O grito de alerta para a falta de cuidados junto dos doentes não covid, que ecoa por todo o sistema de saúde, está, agora, espelhado numa avaliação sobre a gestão por parte do Serviço Nacional de Saúde (SNS) feita pelo Tribunal de Contas (TdC).
No Relatório Covid-19 – O Impacto na Atividade e no Acesso ao SNS, o TdC é muito claro: o SNS não tem capacidade para responder, dentro dos tempos considerados adequados, aos doentes que ficaram para trás por causa da concentração dos esforços dos serviços públicos junto da população infetada pelo novo coronavírus.
“Em Portugal, as medidas de contingência implementadas no sector da saúde incluíram o adiamento da atividade programada (não urgente) desenvolvida no SNS, como forma de conter a evolução do contágio e de garantir a existência de capacidade instalada para fazer face às situações de doença por covid-19. Por outro lado, o receio da população também levou à diminuição da procura dos serviços de saúde, incluindo os urgentes”, enquadra o TdC.
O pior é que a pressão sobre o SNS não vai refrear. Antes pelo contrário, porque à vaga de doentes não covid, junta-se um crescimento sem precedentes do número de infetados pelo SARS-CoV-2 e da procura por cuidados intensivos. “O desafio sobre a alocação adequada dos recursos e a regulação dos níveis de serviço disponibilizados, na medida do necessário, mantém-se no presente e no futuro próximo, tendo em conta a necessidade de recuperação da atividade programada não realizada e a resposta do SNS à segunda fase de maior incidência da pandemia”, sublinha o TdC.
Como se de uma segunda pandemia se tratasse, a carga de doença que afeta os portugueses aumentou de forma expressiva com a paragem, entre março e maio, dos cuidados considerados não vitais por parte do SNS – o sector privado também teve de seguir a mesma orientação –, a que se somou o medo (que ainda existe) por parte de alguns doentes em se deslocarem a unidades de saúde, tal como referencia o documento do TdC. Esta crise soma-se a uma curva ascendente de infetados, por força do alívio das medidas de confinamento.
Como se resolvem os atrasos?
Segundo os técnicos do TdC, “a recuperação da atividade não realizada por força da pandemia covid-19 terá que ocorrer num contexto de cuidados adicionais na prática clínica, com o risco de a capacidade instalada no SNS não ser suficiente para fazer face a este acréscimo de procura sem o aumento acentuado dos tempos de espera”.
Assim, o TdC recomenda que a prestações dos cuidados adiados pode “justificar a criação extraordinária de incentivos específicos no sistema de financiamento do SNS, além do uso que o Ministério confira a todos os mecanismos já existentes e sem prejuízo do seu reforço”, como aconteceu, exemplificam os técnicos avaliadores, com a majoração dos incentivos à produção adicional pelas unidades de saúde do Estado.
Em julho, via portaria publicada em Diário da República, a ministra da Saúde, Marta Temido, definiu o regime excecional de incentivos à recuperação da atividade assistencial não realizada por força da situação epidemiológica provocada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2 e pela doença covid. Assim, até dezembro deste ano as equipas clínicas recebem um adicional pelas primeiras consultas e cirurgias que realizarem extraordinariamente (“preferencialmente, fora do horário de trabalho, nomeadamente aos fins de semana”, segundo a lei).
Uma medida que decorreu do reconhecimento, pelo Governo, de que a suspensão da atividade assistencial não urgente – que, pela sua natureza ou prioridade clínica, não implicasse risco de vida para os utentes, limitação do seu prognóstico e ou limitação de acesso a tratamentos periódicos ou de vigilância –, determinada a 16 de março e em vigor até 2 de maio de 2020, “teve impacto nos tempos de espera para a realização de consultas referenciadas pelo Consulta a Tempo e Horas, e bem assim para a realização de cirurgias no âmbito do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia”.
Numa entrevista recente à TVI, Marta Temido revelou que tinham sido alocados 37 milhões de euros para a realização de atividade adicional, quando foi questionada sobre a hipótese de recorrer aos sectores social e privado. “Não é uma questão da fatura, é uma questão de escolhas”, disse, frisando que a opção foi contratualizar com os profissionais de saúde do SNS.
Menos 93 300 cirurgias programadas
De acordo com o TdC, durante os meses de março a maio, os prestadores do SNS registaram uma menor produção face ao mesmo período de 2019, com destaque para “a redução da atividade cirúrgica programada (menos 93 300 cirurgias, numa redução de 58%), da atividade dos serviços de urgência hospitalares (menos 683 389 atendimentos) e das primeiras consultas externas médicas hospitalares (menos 364 535 consultas)”. As intervenções cirúrgicas urgentes diminuíram 17%, ou seja, houve menos 4 359 operações do que nos meses homólogos de 2019.
Por sua vez, as novas inscrições de utentes para consulta externa hospitalar (referenciadas pelos cuidados de saúde primários) e para cirurgia “reduziram-se acentuadamente”. Assim, refere o TdC, até maio de 2020, “foram feitos apenas 67% dos pedidos de consulta e realizadas 42% das inscrições para cirurgia ocorridas no período homólogo de 2019”. Além disso, as medianas dos tempos de espera dos utentes em lista agravaram-se entre 31 de dezembro de 2019 e 31 de maio último: nas consultas externas, de 100 para 171 dias, com cerca de 69% dos inscritos em 31 de maio de 2020 a aguardar além do TMRG (tempo máximo de resposta garantido); nos inscritos para cirurgia, de 106 para 147 dias, com cerca de 43% dos inscritos na mesma data de referência a ultrapassar também os TMRG respetivos.
No entanto, apesar de haver “alguma deterioração do cumprimento do TMRG nas cirurgias realizadas em maio de 2020”, o mesmo manteve-se “relativamente próximo dos valores registados em anos anteriores”. Nas cirurgias mais urgentes, o cumprimento dos TMRG até melhorou, reflexo do foco da atividade nestes doentes, face aos menos urgentes.
O TdC chama a tenção também para o facto dos dados relativos à linha telefónica SNS 24 estarem desatualizados no Portal da Transparência do SNS. Mesmo assim, “apesar de os dados disponíveis sobre o funcionamento da linha de atendimento permanente SNS 24 não se encontrarem atualizados além do dia 9 de março de 2020, verifica-se que nessa data o número de chamadas oferecidas (27 679) foi superior ao registado em qualquer momento anterior com dados disponíveis (desde dezembro de 2016) – os picos anuais têm vindo a ocorrer no mês de janeiro, mas sem ultrapassar as 10 mil chamadas”. No dia 9 de março, o SNS 24 atendeu quase 11 mil telefonemas, menos de metade da sua capacidade.
A este respeito, o TdC reforça que a ausência de informação atual “não tem justificação face às orientações da Direção-Geral da Saúde, que determinaram o acesso da assistência das pessoas com sintomas covid através do contacto com a Linha SNS 24 e bem assim face aos objetivos subjacentes ao Portal da Transparência, no qual os dados são habitualmente disponibilizados”.
A retoma da atividade não urgente no SNS foi determinada, por despacho da ministra da Saúde, Marta Temido, no início de maio. Porém, em junho “os resultados da retoma da atividade não se revelaram uniformes”, indica o TdC, já que se verificou “uma recuperação parcial dos níveis de produção de consultas e cirurgias programadas em algumas unidades hospitalares mas, na generalidade das unidades, a produção manteve-se inferior à realizada em 2019”.
Mudanças importantes não se fazem de um dia para o outro
Sobre as medidas levadas a cabo pelo Governo, o TdC realça que a teleconsulta foi um instrumento para conter a diminuição dos atendimentos presenciais nos cuidados de saúde primários (aumento de 83% das consultas não presenciais ou inespecíficas, passando a representar 65% do total), “embora nos cuidados de saúde hospitalares a realização deste tipo de consultas se tenha mantido residual”.
Além disso, no agendamento dos cuidados de saúde a prestar com hora marcada, esta opção “já estava disponível para a generalidade dos prestadores de cuidados de saúde do SNS”, faz notar o documento, frisando que “a sua implementação no presente momento pode encontrar as mesmas dificuldades que terão impedido a sua implementação no passado”.
Outros dois exemplos de (boas) intenções – com vista o aumento do papel dos cuidados de saúde primários no SNS e a concentração da atividade hospitalar no tratamento da doença aguda mais diferenciada –, mas sem efeito prático no momento atual, são a realização de consultas hospitalares e de atos relativos a meios complementares de diagnóstico e terapêutica através dos cuidados de saúde primários. Para o TdC estas alterações constituem mudanças “de paradigma no funcionamento do SNS”, pelo que poderão não ser atingíveis no curto prazo.
Este relatório resulta da redefinição pelo TdC, em maio, das prioridades do Plano de Ação para 2020, introduzindo “os ajustamentos necessários à inclusão de várias vertentes de apreciação do impacto da doença covid-19”. Assim, ficou prevista uma ação de controlo relativa à gestão da pandemia pelo Ministério da Saúde e este documento dá conta dos resultados preliminares desta fiscalização.