Economia

A invasão das boxes já começou. E a TV não volta a ser a mesma

Há cada vez mais televisores, mas já não há certeza de que é Televisão aquilo que vemos. Enquanto a Google e a Apple se preparam para conquistar a fatia de leão das boxes de TV, a Meo tornou-se numa das primeiras operadoras mundiais a aceitar três plataformas. Há uma segunda caixa pronta para mudar o mundo

Tudo começou em 2001: nessa altura, não havia iPhones, e o Android ainda não estaria nos planos da Google. E mesmo a Microsoft, apesar do poderio incontestado nos sistemas operativos dos computadores, ainda não tinha ideia precisa do que seria a TV do futuro. E por isso surpreendeu meio mundo ao juntar-se à TV Cabo no lançamento do serviço de TV Interactiva, que ainda se escrevia com consoante muda, pois o acordo ortográfico também não tinha ainda avançado.

Em três anos, o serviço angariou 4000 assinantes, em vez dos 100 mil previstos, mas estava lá tudo o que hoje faz as delícias da TV à medida de cada consumidor, como o agendamento de gravações e a possibilidade de andar para trás e para a frente na emissão e até jogos para controlar com o comando de TV. Mas também havia funcionalidades demasiado futuristas ou que simplesmente deixaram de fazer sentido quando anos depois qualquer pessoa passou a ter um telemóvel mais sofisticado à mão – como era o caso das navegações na Internet. Resultado: a experiência de TV mais sofisticada do mundo foi engendrada em Portugal, mas acabou discretamente em 2004. O que confirma que ter razão antes de tempo é também uma forma de não ter razão.

“Além de não conseguirem o desempenho necessário, as boxes usadas na TV Interactiva eram extremamente caras, podiam chegar ao correspondente a 700 ou 800 euros”, lembra Graça Bau, administrador da TV Cabo no início da década passada.

A Microsoft sentiu-se à vontade para investir num projeto liderado por uma empresa participada (a Microsoft chegou a ser acionista da PT Multimédia), mas não terá encontrado forma de avançar com uma estratégia que hoje parece evidente para todos os operadores e telespectadores: “A Microsoft não teve a capacidade para investir na melhoria da eficiência e do custo das boxes”, refere Graça Bau para depois acrescentar: “O lançamento de produtos exige testes piloto, mas também exige investimentos e resultados a curto ou médio prazo”.

O futuro já começou

Passaram 16 anos e, mesmo para o mais mais benevolente dos espíritos, qualquer médio prazo já expirou face a 2004. A evolução da TV paga confirma quase tudo o que foi anunciado pela TV Interactiva – mas curiosamente o cenário parece não ter qualquer relação com o de 2004. Ao ar incrédulo dos amigos que julgavam que havia um gravador de VHS (cassetes de vídeo…) escondido na sala quando viam a TV Interactiva, sucede-se o espanto de todas as crianças desta década que têm dificuldade em acreditar que já houve tempos em que só havia dois canais de TV em Portugal – e que, para cúmulo, não permitiam andar para trás nas emissões. Mais impensável ainda: as grandes marcas dos telemóveis deram início à invasão das boxes de TV.

Steve Ballmer, sucessor de Bill Gates à frente da Microsoft, quando veio a Lisboa lançar a TV Interactiva
DR

Se a investida de 2004 finou-se em fracasso, no caso de 2020, já não restam dúvidas de que a fronteira entre TV e telemóvel vai esbater-se – até provavelmente ficar remetida para o passado e os consumidores passarem a distinguir a Internet que consomem individualmente no telemóvel, da Internet que lhes traz canais de TV, jogos, aplicações utilitárias, comércio eletrónico ou até uma ou outra funcionalidade de navegação na Net – tudo para consumir em ambiente familiar à frente de um televisor.

E para já a invasão é feita numa cavalgada de boxes – e com os operadores apostados em dar resposta ao crescendo de inteligência das Smart TV, que têm vindo a ser lançadas com sistemas operativos, aplicações e até acessos facilitados para os canais over the top (Netflix, HBO, Disney+ etc.).

Bem a tempo da reentré, a Altice lançou uma Box com sistema operativo Android TV e reivindicou o pioneirismo mundial ao confirmar-se como um dos primeiros operadores de TV paga que já operam em três plataformas. Hoje, um cliente da Meo pode usar, em simultâneo, na mesma casa, televisores que recorrem à já mencionada box Android TV, e boxes “nativas” e boxes Apple TV.

À semelhança do que já era prática histórica, o consumidor tem de pagar um valor mensal pela box que usa – mas como qualquer jornalista facilmente conseguiria adivinhar, os operadores não revelam como é feita a partilha de receitas com as grandes tecnológicas.

Questionada pelo Expresso, a Altice lembra que a aposta nas boxes é uma forma de contentar os desejos de uma audiência que, cada vez mais, procura a complementaridade entre plataformas.Estes novos ecossistemas são vistos, na maior parte das vezes, como complementares da oferta de TV. Para algumas funcionalidades, os nossos clientes preferem as boxes, para outras, optam pelas novas plataformas, o que pressupõe a valorização das várias opções disponíveis”, refere a detentora da marca Meo.

A Vodafone não refere se pretende seguir a mesma estratégia, e limita-se a destacar a aposta na box VBoxPro 4K.

Na oferta da Nos, figura a box Uma e ainda a Apple TV. O desenvolvimento de uma box Android está a ser equacionado pela equipa de engenharia da operadora da Sonae. “A Nos acredita que a complementaridade de ofertas enriquece o mercado e as opções de consumo de conteúdos dos portugueses”, refere a operadora da Sonae.

A complementaridade pode ser a forma mais rápida de chegar ao ímpeto consumista do telespetador, mas não explica tudo o que hoje está acontecer no mercado de TV paga. Em 2013, a Google lançou o Chromecast. Para a larga maioria dos utilizadores, que se habituaram a ver a Google como uma empresa algures entre a Internet e a Informática, o Chromecast era apenas um “dongle”, que dava inteligência (e Internet) a televisores antigos, sem sistema operativo.

Para os operadores e operadores de TV, estava na cara que o “dongle” seria também uma box. Não restavam mais dúvidas de que a Google estava apostada em ganhar uma quota de mercado importante – da mesma forma que está apostada em liderar nos carros autónomos, os sistemas operativos (com o Android) ou as plataformas de vídeo (com o YouTube).

A estratégia usada pela gigante da Internet foi a mesma de sempre: distribuir o software, eventualmente, de graça ou a custos mínimos; deixar o hardware para as marcas especializadas; e por fim, tentar fazer dinheiro com serviços premium ou com a inserção de publicidade. No caso do espaço publicitário não deixa de ser sintomática a estreia de anúncios nas gravações automáticas, que os três maiores operadores portugueses lançaram de forma articulada no final de agosto, criando uma nova fonte de receita partilhada com os canais de TV tradicionais. A Internet já pôs a TV a mexer.

A Meo reivindicou o pioneirismo mundial das operadoras que disponibilizam três plataformas de boxes

A livre distribuição da plataforma Android TV não tardou a produzir resultados: Sharp TV, Aquos. Xiaomi Mi Box S, Nvidia Shield TV e Sony Bravia TV figuram entre as marcas bem sucedidas que usam a plataforma Android TV. Nalguns dos casos de sucesso, a Android TV passou a estar integrada no próprio televisor, elevando-o à categoria de Smart TV; noutros casos menos recomendáveis, a plataforma da Google foi usada para lançar boxes ou apenas plataformas de software que são usadas para desbloquear canais pagos e distribuir pirataria. A Kodi é provavelmente o exemplo tristemente bem sucedido nesta distribuição de conteúdos pirateados.

Às funcionalidades sofisticadas juntou-se outro fator: os utilizadores passaram a poder emular na TV muitas coisas que antes só tinham no computador, no tablet ou no telemóvel. “A compatibilidade entre o Android e a (loja de apps) Google Play disponibiliza aos utilizadores mais de 7000 apps que foram criadas especificamente para a TV pela nossa comunidade, o que supera qualquer outro produto concorrente”, refere a Google numa resposta institucional.

Além das apps desenhadas à medida do televisor, a possibilidade de interagir com a Google Play abre caminho a que os telespetadores experimentem também apps que foram pensadas originalmente para telemóveis ou tablets.

Se não os pode vencer

De súbito, os operadores de telecomunicações deparam-se com uma tendência incontornável e, provavelmente, imbatível: as grandes tecnológicas, artilhadas de avultados pés-de-meia, entraram no segmento, tendo como trunfo a agilidade na produção de software, e a simpatia de milhares de milhões de consumidores que, nalguns casos, chegam à TV e desesperam com plataformas obsoletas ou ficam descontentes por não poderem aplicar perfis e lógicas de utilização em voga nos telemóveis.

A seguinte descrição foi enviada pela Nos e diz respeito às funcionalidades da Apple TV, mas provavelmente poderia ser assinada pela larga maioria dos operadores de telecomunicações que já inseriram boxes das grandes tecnológicas nos seus serviços: “A Apple TV oferece uma experiência cinematográfica com uma extraordinária qualidade de imagem 4K HDR e um som imersivo Dolby Atmos. Tem um comando de tecnologia touch de grande precisão que torna inovadora a experiência de explorar conteúdos numa televisão, com uma navegação rápida e fluida. E com um simples toque os clientes da Nos, com outros equipamentos Apple, podem partilhar filmes e programas de TV em 4K HDR e, ainda, músicas e fotos”. Apesar da adesão às boxes, a Nos admite que, por enquanto, boxes nativas” e boxes da Apple e da Google “são opções para perfis de utilizadores diferentes”.

Não é preciso aceder a documentos confidenciais para deduzir que a Google está apostada em acabar com esta diferença de perfis, através da evangelização de consumidores que hoje veem TV nas boxes “nativas”, que até podem ter melhor qualidade de imagem e ter funcionalidades mais estáveis do ponto de vista tecnológico, mas estão navegar contra a “moda”. Mediakind e Nagra são as duas produtoras que dominam as boxes “nativas” no mercado português – e terão seguramente de se bater pela sobrevivência com Apple e Google para continuarem no mercado.

Possivelmente, os operadores também terão dificuldade em ceder parte do controlo exercido sobre os pacotes de canais de TV e demais conteúdos, mas não tiveram outra alternativa quando fenómenos de popularidade como o Netflix, e num plano diferente, a Eleven Sports, surgiram no mercado e ameaçaram, explícita ou implícitamente, que haveriam de criar os seus próprios circuitos de distribuição se os operadores não os aceitassem – pois basta haver Internet para que um canal de TV consiga ser distribuído em qualquer ponto do mundo.

A Nos tem vindo a disponibilizar a box Uma no segmento das boxes "nativas"
Bruno Barata

O número de televisores e outros ecrãs não parou de aumentar, mas já não há certeza de que é Televisão o que as pessoas veem nesses dispositivos. Mais uma vez, recorre-se à descrição de um operador que serve de testemunho para qualquer operador que hoje tem de lidar com a proliferação das segundas caixas que têm a pretensão de mudar o mundo: “A TV da Vodafone oferece uma experiência multiscreen de última geração, em todos os ecrãs, a qualquer hora e em qualquer lugar, potenciada pela melhor rede de comunicações do mercado, onde se inclui, desde início de 2019, uma app para equipamentos Android TV, sejam boxes ou televisores, com as várias funcionalidades como TV em direto, acesso a Gravações, Guia TV ou Videoclube”.

A Altice confirma uma "tendência de diversificação de plataformas, ecrãs e conteúdos cada vez mais evidente", mas também lembra que "a sinergia com os novos ecossistemas possibilita ainda uma maior interação com os equipamentos móveis dos clientes, permitindo funcionalidades como a partilha do ecrã do equipamento móvel com a TV".

Pesquisa inteligente por voz, acesso a apps, vídeos numa lógica de streaming, ou over the top, figuram entre o leque de funcionalidades diferenciadoras que já se encontram em muitas das boxes mais avançadas. No entender da Vodafone, é este arsenal tecnológico que permite avançar para a TV do futuro, personalizada à medida de cada cliente”.

A personalização de boxes e conteúdos é, sem dúvida, a trave mestra da revolução das boxes – mas poderá ter uma expansão limitada se não tiver em conta o contexto doméstico. “É evidente que é um suplício para uma família inteira estar a olhar para a televisão enquanto um dos membros vai navegando no seu perfil”, atira Graça Bau dando como exemplo o consumo de TV dos netos e dos amigos da mesma geração: “junte três miúdos à frente da TV. Dois deles vão ficar excluídos porque não estão a ser seguidos o seus perfis no Netflix ou noutro canal qualquer”.

Se nos conteúdos a personalização já é geradora de entropias, então espere-se até chegar o tempo em que as boxes de TV já não serão só usadas para transmitir TV. Aos jogos e à música já aqui mencionados, haverão de juntar-se, mais tarde ou mais cedo, as ferramentas de teletrabalho e ainda as plataformas de domótica, que permitem controlar gadgets, eletrodomésticos inteligentes e eventualmente até sensores corporais em pessoas e animais.

A Vodafone aposta na VBoxPro 4K para competir no cada vez mais competitivo mercado das boxes de TV
DR

Nessa altura, é bem provável que o mercado global das boxes de TV tenha superado os os 20 mil milhões de dólares (16,9 mil milhões de euros; a estimativa é da Grand View Research) e o número de boxes vendidas já tenha superado os 210 milhões de unidades compilados para 2019 pelo site Statista a partir de estimativas de consultoras. E até é possível que aquilo a que hoje chamamos box já não seja uma box. Ou pelo menos não envolva um equipamento específico.

Graça Bau acredita que, de ora em diante, as funcionalidades das boxes vão começar a migrar para os televisores cada vez mais inteligentes e para as próprias redes dos operadores, que disponibilizam cada vez maiores larguras de banda ao mesmo tempo que reduzem a latência.

As boxes vão ficar cada vez mais pequenas até desaparecerem”, prevê o antigo administrador da TV Cabo. Será que voltou a ter razão antes do tempo?

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: senecahugo@gmail.com

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