“Não sou nada wikipédico. Sou muito para a frente”
Aveiro é marcada pela ligação entre território e inovação. Nas palavras de José Cid, “sinto-me bem aqui”, apesar do icónico cantor ser da Chamusca
Pedro Nunes
Projetos Expresso. Numa região que celebra o património em cada esquina, as figuras de Aveiro trabalham ao ritmo do futuro. Como José Cid, que, mesmo após ganhar o Grammy Latino, não gosta de olhar para trás
Deixa-me só ir ali buscar o grémio.” O grémio é o Grammy Latino de Excelência Musical e quem o vai buscar, em cima de um piano numa das divisões da sua casa de Mogofores, é José Cid. O músico português tinha acabado de regressar de Las Vegas, uma “Disneyworld para adultos”, mas que é como Coimbra, ou seja, “tem mais encanto na hora da despedida”. José Cid converteu-se no segundo português a arrecadar a distinção, após Carlos do Carmo, e viu a sua carreira reconhecida além-fronteiras. Um percurso com muitos êxitos pelo caminho e que não envergonha nada para quem começou profissionalmente como “cantor numa banda de covers”, ou “couves”, como acrescenta entre risos, que “é o que muita gente faz agora”. Parar é que continua a não ser opção. Antes pelo contrário. “Enquanto conseguir subir estas escadas, tudo bem”, atira enquanto nos leva pela sua vida espalhada pelas paredes e cantos da mansão onde nos recebeu.
O olhar vincado para o futuro é bem visível ao longo das estradas, casas e empresas da região de Aveiro, por onde figuras das mais diferentes áreas despontaram para carreiras de relevo e que continuam a dar que falar. Por isso fazem parte da mais recente seleção do projeto “Os Nossos Campeões”, que junta Expresso, SIC Notícias e Novo Banco para dar a conhecer os rostos que ajudam a moldar o país, seja na economia ou na cultura (pode conhecer os escolhidos de Aveiro na página do lado).
E assim voltamos ao estúdio de José Cid, entre Amália, Beatles e uma cópia do muito procurado “10.000 Anos Depois entre Vénus e Marte”. Na casa que lhe “caiu em cima” e que partilha com a sua mulher, artista e “guerreira timorense”, Gabriela Carrascalão. A residência é uma herança familiar de grandes dimensões onde “só se utilizam quatro divisões” e se “dorme até tarde” para ficarem acordados “até às 2h da manhã, a ver filmes”. Enquanto vai falando, José Cid mostra com orgulho os retratos da mulher e os (muitos) artefactos que foi reunindo ao longo da vida, que, apesar de não ter começado na região de Aveiro, tem com a cidade uma relação muito forte.
“As velhotas da terra tratam-me por Zezinho. Talvez dez. O resto por Zé ou sr. Zé. Acho um piadão”, partilha entre sorrisos, até porque apesar de ser “um menino prodígio” que aos “3 anos já cantava e tocava piano”, nunca quis ser especial. “Sou mais um entre o povo. Não faço nada questão de ser artista, não faço papel de superstar”, diz. Com a certeza de que não é “muito de recordar o passado” nem “muito wikipédico”, mas sim “muito para a frente”. Ou não tivesse já lançado esta semana mais um álbum, “Fados, Fandangos, Malhões... e uma Valsinha”, com a promessa de continuar até as forças lhe permitirem. “Não ouço nada porque não tenho tempo. Ouço-me a mim a próprio, que já tenho muito que ouvir”, atira.
De Mogofores e da inovação musical — onde “só entra quem toca e canta bem, não há computadores” — seguimos para a inovação industrial que permitiu à Rodi — Sinks & Ideas chegar ao topo europeu. Na sede, os corredores estão ladeados de obras de arte, que fazem parte da “pequena coleção” do CEO, Armando Levi, e que este faz questão de ir partilhando. “É uma forma de vivermos o nosso dia a dia e retiramos alguma inspiração”, defende. Inspiração que está bem patente na junção improvável entre rodas, aros de bicicleta e lava-louças, que ajudou a empresa a tornar-se uma referência. Numa altura de crise dos tradicionais fabricantes de ciclomotores em Portugal, a questão da sobrevivência para a empresa fundada em 1952 era muito real e o responsável revela como é que esta união apareceu. “Tínhamos uma prensa de estampagem de depósitos de combustível de ciclomotores e estávamos a pensar que outro uso é que lhe poderíamos dar. Uns amigos disseram na brincadeira que podíamos fazer lava-loiças. E a ideia ficou.” Daí a uns anos, a empresa que Armando Levi conheceu pelas mãos do pai, que “nas férias e fim de semana incutia o vício da fábrica”, tornou-se na primeira da Europa a fabricar lava-louças estampados e hoje a ambição é chegar ao “top 3 europeu”.
Armando Levi, aproveitou uma brincadeira de amigos para fazer lava-loiças
Pedro Nunes
Leitão e ovos moles A visita ao polo principal da Grestel conduzida pelo fundador, Miguel Casal, obriga a algum cuidado, sob pena de danificar os inúmeros objetos de cerâmica que se encontram ao longo do caminho. Cumprimentando sempre os funcionários, revela os cantos de uma casa que já colaborou com nomes como Ralph Lauren e em que 98% da produção vão para exportação. “Nesta área, nem faz sentido que seja de outra forma”, diz, o que não impediu de aproveitar o bom momento que o turismo e a restauração vivem em Portugal para apostar cada vez no mercado nacional. Em nome próprio com a marca Costa Nova, criada em 2006 e que após a popularidade internacional começa agora a ganhar terreno no país.
“O nome leva-nos para um local fotogénico, que fica aqui perto, e onde habitualmente levamos os clientes a almoçar”, revela. O empresário fala de “uma ligação emocional mas também pragmática” à cidade onde está a “construir uma residência para estudantes” e identifica grande “potencial para crescer”.
É em pleno centro de Aveiro, no mercado do peixe, que Ricardo Costa chega ao nosso encontro. Enquanto o sol se escondia e obrigava a abrigar do frio para a conversa, acabamos por nos sentar num café perto, onde “se encontrava com os amigos”. O chefe recorda os inícios no universo da restauração a “descascar batatas e a lavar o chão”, até chegar a responsável máximo pelo restaurante do Hotel Yeatman, em Vila Nova de Gaia, onde atingiu as duas estrelas Michelin, sem esquecer que “a pergunta que mais detestava quando era miúdo era o que queria ser”. As tradições culinárias que fazem da região “uma das mais ricas do país”, que vão desde o leitão aos ovos moles, influenciaram aquilo que “é um estilo de vida, nem é bem uma profissão” e que o mantêm sempre ligado à região que o viu nascer. “São coisas que valem a viagem”, numa cidade com uma “qualidade de vida espetacular.” Aliás, “quem me dera para cá voltar”, confessa.
Já Ricardo Vieira de Melo recebe-nos no seu ateliê com vista para um dos braços da ria e fala de uma profissão que “praticamente já nasceu consigo” e que com a filha já chega “às três gerações”. Responsável pela RVDM Arquitectos, revela uma paixão que “é muito exigente e precisa de muitas horas de trabalho”. Após uma passagem por Lisboa, acabou por se instalar em Aveiro, porque na capital “havia demasiados arquitetos e aqui de menos”. Quando a arquitetura está “num momento estranho, em que há muito trabalho e pouco dinheiro”, o arquiteto tem a ambição de “tentar ampliar o âmbito do trabalho” e avançar mais para o estrangeiro. Sem esquecer o ambiente que o rodeia e onde há muitos anos desenvolve o seu trabalho. “Há aqui uma coisa curiosa”, acredita, que é uma “relação entre paisagem, natureza e arquitetura que não acontece praticamente noutro lado em Portugal.” Desde o “contacto com a ria” aos palheiros em frente ao mar. “Já vi aqui do ateliê bandos de flamingos.”
Uma região aberta a inovar
O Europarque de Santa Maria da Feira recebeu a Summit de Aveiro do projeto “Os Nossos Campeões” e juntou alguns dos distinguidos desta edição para discutirem o que os motiva e perceber qual o seu contributo para o tecido económico e cultural da região. A começar pelo “grande dinamismo que se tem verificado nos últimos anos, sobretudo ao nível da criação de empresas”, garantiu António Ramalho. O CEO do Novo Banco traçou um retrato financeiro que permitiu identificar casos “de criação de valor, de que esta região é um exemplo claro”, e que possibilitam a Aveiro destacar-se a nível nacional. “O segredo é colocarmos toda a nossa alma na procura de qualidade”, confessou Licínia Ferreira”, responsável pelo restaurante Rei dos Leitões, enquanto o CEO da Rodi — Sinks & Ideas, Armando Levi, considera que “ainda somos um bocadinho passivos e que não podemos ter medo da concorrência”. Miguel Casal, fundador da Grestel, lembra que “ninguém tem a resposta mágica à pergunta do que se vai passar daqui a quatro ou cinco anos”, mas, como cantou José Cid no final do programa, “que bom seria ficar para sempre em Aveiro”.
Ricardo Costa utiliza muitas influências gastronómicas da infância e região no seu trabalho
Pedro Nunes
Assim é Aveiro (em números)
PIB
9 por cento é quanto valem Aveiro e Porto Sul na composição do PIB português, segundo dados de um estudo do Novo Banco, com crescimento médio ligeiramente superior à economia portuguesa nos últimos anos
Exportações
135 milhões de euros é quanto se estima que as exportações de bens vão atingir em 2019, em Aveiro, com a maior percentagem, 19,3%, a ser de máquinas e aparelhos
Balança Comercial
7 por cento é quanto cresceu o volume de negócios das empresas de Aveiro entre 2015 e 2017, um crescimento médio anual superior ao conjunto da economia portuguesa
600 milhões de euros é o saldo positivo da balança comercial de bens da região em 2018, em contraste com o conjunto da economia portuguesa
Miguel Casal inovou para criar uma das marcas de cerâmica portuguesas mais populares no estrangeiro
Pedro Nunes
Os campeões
Armando Levi O CEO da Rodi — Sinks & Ideas dirige uma empresa que é o maior fabricante europeu de rodas e aros de bicicleta, mas que também se destaca no fabrico de lava-loiças.
José Cid Um dos cantores de maior sucesso em Portugal tem uma carreira com mais de 60 anos e que foi recentemente coroada com o Grammy Latino.
Licínia Ferreira É a responsável pela renovação do restaurante Rei dos Leitões, que recentemente foi eleito o melhor da Europa, segundo o Conselho Europeu de Confrarias Enogastronómicas.
Luís Onofre Presidente da Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes e Artigos de Pele e Seus Sucedâneos e cuja marca com o seu nome é conhecida internacionalmente.
Manuela Gomes A investigadora de Águeda é a presidente do Instituto de Investigação em Biomateriais, Biodegradáveis e Biomiméticos, da Universidade do Minho.
Miguel Casal É o fundador da Grestel, empresa de produtos cerâmicos que já trabalhou com a Ralph Lauren e cuja marca Costa Nova é a escolha de muitos chefes.
Miguel Vieira O estilista é um dos portugueses do mundo da moda mais conceituados no estrangeiro.
Ricardo Costa Já com duas estrelas Michelin no currículo, o chefe é neste momento o responsável pelo premiado restaurante do hotel Yeatman.
Ricardo Vieira de Melo Fundador do ateliê RVDM Arquitectos, em Aveiro, já foi premiado em vários concursos nacionais e internacionais.
Textos originalmente publicados no Expresso de 23 de novembro de 2019