José Berardo viu esta semana parte do seu património ser arrestado por ordem judicial, com base numa figura jurídica pouco usada em Portugal. Mas esta pode bem ser apenas a ponta do "iceberg": é que além das dívidas de mais de 900 milhões de euros à banca o empresário tem também o controlo de um conjunto de negócios bem sucedidos e capitalizados aos quais os bancos poderão tentar deitar a mão. E uma valiosa coleção de arte.
Conforme revelou a SIC Notícias, o Tribunal da Comarca de Lisboa avançou com o arresto de dois apartamentos de Berardo em Lisboa no valor de 4 milhões de euros, arrestando igualmente um conjunto de títulos e participações detidos pela Atram Sociedade Imobiliária, que é detida por uma "offshore" alegadamente controlada por Berardo.
A ordem de arresto resultou de um instituto jurídico chamado “desconsideração da personalidade jurídica”, que é frequentemente usado nos Estados Unidos da América e no Brasil, mas muito raramente utilizado pelos juízes em Portugal. Essa figura jurídica prevê, genericamente, que a Justiça possa passar por cima da autonomia jurídica de determinada empresa para poder atribuir ao seu verdadeiro dono a responsabilidade pelas dívidas contraídas pela sociedade.
Segundo o advogado Luís Miguel Henrique, “já houve situações em Portugal em que foi aplicado este instituto”. É um instrumento a que os credores podem recorrer “quando o mal está na sociedade e o património está na pessoa”. Contudo, esta figura não está inscrita na lei portuguesa, integrando apenas a doutrina jurídica: cabe a cada juiz analisar, para cada caso, a sua aplicabilidade, juntamente com uma avaliação da existência de jurisprudência.
Uma dissertação de mestrado de 2015 do advogado André Tavares Moreira debruçou-se justamente sobre o argumento que serviu de base ao primeiro arresto de bens de Berardo (e que produziu resultados muito mais rápidos do que a ação executiva que a Caixa Geral de Depósitos, o Novo Banco e o BCP moveram a Berardo para tentar cobrar 962 milhões de euros em dívida.
Segundo a tese de André Tavares Moreira, a ideia da desconsideração da personalidade jurídica “gera uma certa controvérsia”. Este princípio doutrinário do Direito foi invocado pela primeira vez em Portugal em 1945. “Pondo de parte a separação entre a personalidade jurídica dos sócios e a personalidade jurídica da sociedade comercial, é possível imputar responsabilidade e consequências aos autores dos comportamentos”, escreveu o advogado na mesma tese.
“Os tribunais nacionais acolheram lenta e tardiamente a figura da desconsideração da personalidade jurídica e, embora analisem o tema, raras vezes a aplicam ao caso concreto”, descreu André Tavares Moreira. Porquê? “Quer porque as partes se limitam a invocá-la e não providenciam elementos de prova necessários, quer por que não se faz prova da existência de fraude à lei ou abuso de direito”.
Mas desta vez, com José Berardo, este princípio raro (que é diferente das penhoras associadas a ações executivas) foi aplicado. E poderá agora abrir caminho a que sentenças semelhantes possam ser adotadas para o restante universo patrimonial de Berardo, dos vinhos às obras de arte.
Uma mescla de coleções
Conforme o Expresso já havia escrito na sua edição de 17 de maio, Berardo criou ao longo dos anos um império repartido por várias entidades juridicamente distintas e separadas. Foi juntando coleções de arte, ativos imobiliários e participações empresariais, numa teia de interesses económicos com situações financeiras distintas: há empresas endividadas e em incumprimento, mas também há sociedades bem capitalizadas.
Entre as empresas com boa saúde financeira está a sociedade vinícola Bacalhôa, com capitais próprios positivos de 88 milhões de euros. A Bacalhôa é detida em 60% pela Associação de Coleções, uma entidade criada em 2005 por Berardo e cuja missão original era albergar parte das obras de arte do empresário português. Outros 18% da Bacalhôa pertencem à Metalgest, sociedade da Zona Franca da Madeira fundada em 1984 que apresenta capitais próprios positivos de 25 milhões e que é detida em 47,9% pela Fundação José Berardo.
A Bacalhôa, um dos maiores produtores portugueses de vinho, por seu turno, detém 49% da Matiz Sociedade Imobiliária (os outros 51% são diretamente detidos pela Associação de Coleções), que será a proprietária dos terrenos e imóveis da Bacalhôa e que apresenta uma boa saúde financeira, com capitais próprios de 21 milhões de euros.
Outra empresa bem capitalizada, com capitais próprios positivos de 47 milhões de euros, é a Empresa Madeirense de Tabacos, na qual a Fundação José Berardo tem uma posição conhecida de 48%.
Em todos estes casos, estamos a falar de empresas que não só têm ativos que cobrem o respetivo passivo como têm ainda (por via dos ganhos acumulados ao longo dos anos) capitais próprios positivos (atribuíveis aos sócios).
Segundo as fontes ouvidas pelo Expresso, a banca poderá legitimamente tentar obrigar Berardo a entregar as suas participações em muitas das entidades que hoje gozam de boa saúde financeira para saldar as dívidas superiores a 900 milhões de euros (ou parte disso). E poderá tentar fazê-lo ao abrigo do instrumento jurídico da “desconsideração da personalidade jurídica” que foi usado para o arresto das casas de Berardo.
Este é um processo que se pode arrastar durante anos, caso José Berardo e o seu advogado avancem com a contestação legal das ações executivas e dos arrestos. Ou poderá forçar Berardo a aceitar um acordo com a banca para saldar a sua dívida.
Para já, os bancos estarão interessados em conhecer a fundo todo o património que Berardo possa ter em Portugal e no exterior. Além das empresas portuguesas de que é sócio e que controla através da Fundação José Berardo e da Associação de Coleções, Berardo é dono das sociedades maltesas Armide Holdings e Armada Limited.
Não lhe são associadas sociedades offshore além da que detém a Atram (dona do apartamento na Avenida Infanto Santo, em Lisboa, onde Berardo mora). Mas o império que construiu pode acabar por cair porque, apesar de complexo, tem o seu nome no topo da cascata. Ou, como comenta uma outra fonte ouvida pelo Expresso, “a fragilidade do edifício de Joe Berardo é que tudo está centralizado nele”.
O Expresso tentou contactar o advogado de José Berardo, André Luiz Gomes, mas tal não foi possível de imediato.