“Um projeto bem-sucedido que não trouxe todos os ganhos que esperávamos”: o euro faz 20 anos
Ralph Orlowski/Getty
Há 20 anos, Portugal esteve no chamado "pelotão da frente" da adesão à moeda única. Duas décadas depois, o euro passou por vários sobressaltos e é ainda um projeto incompleto. Deixamos-lhe uma cronologia dos principais momentos históricos
Há duas décadas, 11 países europeus abdicavam definitivamente da sua soberania monetária para criarem uma moeda única a nível europeu. Portugal esteve no chamado “pelotão da frente” da adesão ao euro, um marco na história da integração monetária mas que ainda está longe de dar por cumpridos todos os seus objetivos.
Num discurso feito há 15 dias para marcar a efeméride, Mário Draghi, o presidente do BCE que no meio da turbilhão da crise foi decisivo para estabilizar os mercados, reconhecia isso mesmo, descrevendo a moeda única como “um projeto bem sucedido que não trouxe todos os ganhos que esperávamos”.
Já Mário Centeno, na sua conta de twitter, chama-lhe "uma das maiores histórias de sucesso europeias".
Em dia de aniversário, deixamos-lhe uma cronologia de um projeto ainda em construção.
1999
A 1 de janeiro, as taxas de câmbio das moedas de 11 estados da União Europeia aderentes ao euro foram irrevogavelmente fixadas. Portugal estava no chamado “pelotão da frente”, a par da Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Finlândia, França, Holanda, Irlanda, Itália e Luxemburgo. Um euro passou a representar 200,482 escudos, um pouco mais do que a moeda de 200 escudos (o símbolo do escudo era o cifrão, $).
2001
A Grécia, que tinha ficado de fora por não cumprir as condições de convergência, adere à zona euro. As dificuldades de cumprimento dos critérios de adesão vieram a revelar-se mais tarde quando o país foi a primeira vítima – e o rastilho – da crise da dívida pública na zona euro.
2002
susana rodrigues
A 1 de janeiro ocorre a substituição física das moedas nacionais pelo euro. O escudo, que funcionou como moeda nacional portuguesa desde 1911, foi substituído no dia-a-dia e todos tivemos de nos habituar a mudar do cifrão ($) para o euro (€) e a deixar de falar em tostões (um tostão equivalia a dez centavos) e contos (um conto equivalia a mil escudos). Na linguagem popular, também se usava a palavra ‘paus’ para quantias na altura elevadas (mil ‘paus’ equivalia a mil escudos, a um conto). Na altura, os bancos centrais nacionais disponibilizaram cerca de 144 mil milhões de euros em moedas e notas aos bancos. Apesar dos receios de um “bug informático”, a transição foi bem sucedida e, três dias depois, 96% das caixas automáticas da zona euro estavam a distribuir notas de euro. No fim de fevereiro, as moedas nacionais saíram definitivamente de circulação.
2003
d.r.
A 1 de novembro, Jean Claude Trichet, governador do Banco de França desde 1993, assume a presidência do Banco Central Europeu (BCE), sedeado em Frankfurt, na Alemanha. O banqueiro francês substituiu o holandês Win Duisemberg à frente do segundo mais poderoso banco central do mundo, depois da Reserva Federal norte-americana.
2007
A Eslovénia adere ao euro. Surgem os primeiros sinais da crise do subprime nos EUA que, no verão desse ano, chega à Europa com o banco BNP Paribas a ser obrigado, em agosto, a congelar temporariamente três fundos de alto risco especializados em dívida hipotecária norte-americana. As bolsas europeias afundam-se 69%.
2008
d.r.
Chipre e Malta aderem à moeda única. O petróleo e algumas matérias-primas fazem disparar a inflação em todo o mundo. O BCE, numa decisão vista hoje quase como absurda numa altura em que os sinais de crise eram cada vez mais evidentes, sobe, em julho, a taxa directora de 4% para 4,25%. Pouco depois, com o estouro do banco norte-americano Lehman Brothers e a crise financeira global, foi obrigado a inverter rapidamente a marcha. Em outubro, novembro e dezembro desceu a taxa fechando o ano em 2,5%. A Reserva Federal (Fed), entretanto, nos EUA desceu em dezembro a taxa directora para o intervalo entre 0% e 0,25%, um mínimo histórico. A diferença entre as políticas monetárias do BCE e da Fed é abissal – só em março de 2016, quase seis anos depois, o BCE desceu a taxa para 0%. Apesar dos sobressaltos, o BCE chegou à crise financeira com um desempenho quase perfeito no seu objetivo fundamental: ter uma taxa de inflação abaixo mas próxima de 2%. Acertou quase na mouche, em média. O pior veio depois porque, com a crise, a inflação caiu para valores muito baixos e até negativos em alguns meses. Em julho, o euro atingiu o máximo face à moeda americana em redor dos 1,6 dólares. Depois cairia a pique, 22%, até final de outubro, quando valia 1,25 dólares. As bolsas à escala mundial dão um trambolhão de 42%, mas as praças europeias escapam à maré vermelha, com um ganho gigante de 86%.
2009
Os socialistas do PASOK, liderados por George Papandreou ganham as eleições em outubro, na Grécia
Alkis Konstantinidis/reuters
A Eslováquia adere ao euro. Foi o ano da Grande Recessão e, pela primeira vez em muitos anos, houve uma quebra do PIB mundial. A zona euro recuou 4,5% e, em Portugal, a economia teve uma contração inferior a 3%. No final desse ano, nasceu a crise da dívida pública na zona euro depois de o novo governo grego – dos socialistas do PASOK, que ganham as eleições em outubro – ter corrigido o valor do défice deixado pelo seu antecessor e, com isso, lançado dúvidas sobre a credibilidade das contas públicas gregas. A taxa directora do BCE fecha o ano em 1%, então um mínimo histórico.
2010
A crise da dívida pública atinge um novo patamar. A Grécia é resgatada em maio, num modelo inédito desenhado entre a Europa e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Uma troika (Comissão Europeia, BCE e FMI) surge a “gerir” os resgates, com os governos locais a funcionarem como protectorados de facto, sujeitos a programas de austeridade muito apertados. O FMI abre uma exceção para Atenas e não exige, então, uma reestruturação de dívida. O BCE lança o primeiro programa de compra de dívida pública e privada no mercado secundário para tentar acalmar os mercados – o Securities Market Program (SMP), abrangendo cinco membros, conhecidos como ‘periféricos’ (Espanha, Grécia, Irlanda, Itália e Portugal). O SMP seria descontinuado em setembro de 2012.
Em novembro, depois de forte pressão nos mercados financeiros, é resgatada a Irlanda. Portugal escapou apesar de as taxas de juro a 10 anos terem ultrapassado a barreira dos 7% fixada pelo então ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, como o valor a partir do qual o pedido de resgate se tornava necessário.
2011
Rui Duarte Silva
A Estónia junta-se à moeda única. É o primeiro dos três países bálticos a integrar o euro. Para enfrentar a crise da dívida e ter capacidade de financiar resgates, é criado o Mecanismo Europeu de Estabilidade dotado de meio bilião de euros.
Depois de várias tentativas de acalmar os mercados e de um PEC4 rejeitado, o Governo de Sócrates demite-se e Portugal acaba por pedir um resgate internacional. Programa da troika começa oficialmente em maio e dura três anos com um envelope financeiro de €78 mil milhões: um terço do FMI e dois terços de fundos da União Europeia. Em julho, a agência Moody’s corta o rating da dívida portuguesa para lixo financeiro. A crise na zona euro continuava a agravar-se e vários outros países, como Espanha, estavam sob forte pressão. Trichet comete novo erro, e sobe a taxa directora do BCE para 1,25% em abril e 1,5% em julho. Mario Draghi, até então governador do Banco de Itália, assume a liderança do BCE em novembro e corrige a trajectória de política monetária do seu antecessor: desce a taxa directora para 1,25% em novembro e 1% em dezembro, regressando ao nível em que tinham estado desde maio de 2009. A economia mundial sofre um choque psicológico: a China ultrapassa o Japão e passa a segunda maior economia do mundo (se a União Europeia e a Zona Euro não forem consideradas integradamente).
2012
ARMANDO BABANI/epa
Os juros das Obrigações do Tesouro português atingem um máximo de 16% no mercado secundário em janeiro. No mês seguinte, a Grécia vê aprovado um segundo resgate, implicando, agora, uma reestruturação da dívida pública na mão dos credores privados, uma estreia na zona euro. Em julho, em Londres, Mário Draghi faz a declaração que é considerada central para inverter o curso da crise da dívida na zona euro: “O BCE está preparado para fazer tudo o que for preciso para preservar o euro. E, acreditem em mim, será suficiente”. Simbolicamente é descrita como o momento que “salvou” o euro.
Esse verão marcou a viragem na crise e, em setembro, foi lançado um novo instrumento do BCE – o OMT (Outright Monetary Transactions) – para intervir no mercado secundário em caso de ataques especulativos, permitindo ao BCE comprar dívida sem limites. Até hoje nunca foi usado. Nesse ano, a Espanha tem um resgate light só para a banca. 2012, também, foi marcado pelo início de atividade do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE, ESM na sigla inglesa) e pelo arranque da União Bancária, ainda inacabada. O MEE tem a primeira intervenção financeira precisamente no resgate de Espanha. O PIB da zona euro volta a cair na recessão ainda antes de ter recuperado do tombo de 2009. É a única região do mundo a ter uma recaída em recessão que se estenderia por 2013.
2013
Dá-se o resgate de Chipre em moldes diferentes dos habituais até então, impondo a liquidação de um banco, a criação de um ‘banco mau’ e de um Fundo de Solidariedade, e a imposição de controlo de capitais e perdas aos accionistas, credores e depositantes acima de 100 mil euros.
A zona euro volta a viver um ano de recessão e, em Portugal, a economia atinge o ponto mais baixo de três anos de recessão (2011-2013). A Irlanda é o primeiro dos resgatados a realizar o que viria a ser baptizado de ‘saída limpa’ – sem qualquer apoio adicional, passando a depender exclusivamente das emissões de dívida no mercado. Em dezembro, a Reserva Federal confirma que terminará o programa de compra de ativos (vulgo quantitative easing, acrónimo QE) em 2014 – ainda o BCE não o iniciou. Economia mundial sofre um novo choque psicológico: a China torna-se o primeiro ator no comércio internacional, ultrapassando os EUA.
2014
Daniele Nouy
Susana Vera/reuters
A Letónia adere ao euro. Como resposta à crise, é criado o Mecanismo Único de Supervisão (MUS) que coloca os maiores bancos da zona euro sob a supervisão direta do BCE – foi o primeiro passo para uma União Bancária muito incompleta. Portugal tem uma ‘saída limpa’ do resgate da troika em maio, mas, em agosto, o Banco de Portugal é obrigado a intervir no BES num modelo de resolução até então inédito na Europa. Economia europeia volta a crescer e o BCE adota, pela primeira vez, taxas negativas de remuneração dos depósitos dos bancos (-0,1 em junho e depois -0,2 em Setembro), que, desde essa altura, têm sido muito contestadas. As taxas directoras aproximam-se de zero e são lançadas novas linhas de cedência de liquidez mais vantajosas para os bancos, designadas pelo acrónimo TLTRO (targeted longer-term refinancing operations), que visam direccionar o crédito bancário para a economia real.
2015
Alexis Tsipras
d.r.
A Lituânia adere à moeda única. Com vários anos de atraso dos seus ‘colegas’ da Reserva Federal, Mario Draghi lança em março o programa de compra de dívida, conhecido pelo acrónimo QE, que manteve até final de 2018. Inicia com uma aquisição mensal de 60 mil milhões de euros por mês e o efeito imediato é a descida das taxas de juro da dívida na zona euro; no caso de Portugal, os juros a 10 anos descem para mínimos históricos, de 1,5%. Na Grécia, o Syriza liderado por Alexis Tsipras ganha eleições, e é o primeiro partido de esquerda radical a chefiar um governo da zona euro. Atenas reabre o processo de renegociação do resgate, que se arrasta até ao verão, de um modo muito conturbado. Em junho, a Grécia tem de impor um ‘corralito’ bancário e falha um pagamento pontual ao FMI. A proposta de novo resgate é rejeitada em referendo e a Grécia corre o risco de um Grexit, mas o ministro das Finanças Varoufakis demite-se e o novo ministro Tsakalotos fecha com o Eurogrupo um terceiro resgate que só terminaria em 2018, ficando o FMI de fora do novo financiamento. Em novembro, o PS forma governo com apoio parlamentar maioritário da esquerda. Mário Centeno é o novo ministro das Finanças. A taxa do BCE para a remuneração dos depósitos é agravada para -0,3% em dezembro. A Fed realiza a primeira subida da taxa directora desde o mínimo histórico estabelecido em dezembro de 2008. O PIB da zona euro ultrapassa, finalmente, o nível anterior à crise de 2009.
2016
David Cameron
JASON LEE/reuters
Em março, o BCE desce a taxa directora para o mínimo histórico de 0% e agrava a taxa de remuneração de depósitos para -0,4%. Decide subir as compras mensais de ativos para €80 mil milhões, mais vinte mil milhões por mês. A União Europeia (UE) sofre um choque político com a vitória do Brexit (saída da UE) no referendo de junho e a política internacional regista o segundo ‘cisne negro’ num só ano com a eleição de Trump para a presidência dos EUA em novembro.
2017
Mário Centeno
tiago miranda
Com a vitória em março de Emmanuel Macron na segunda volta das presidenciais em França, o risco de uma rotura na zona euro no horizonte de doze meses cai de 25% para 14%. Portugal sai do Procedimento por Défice Excessivo. A partir de abril, o BCE reduz as compras mensais de ativos para €60 mil milhões. Duas das principais agências de rating, a Standard & Poor’s e a Fitch retiram Portugal da condição de lixo financeiro respetivamente em setembro e dezembro.
2018
Matteo Salvini
Alessandro Bianchi/reuters
O BCE reduz as compras mensais de ativos para €30 mil milhões a partir de janeiro e em outubro diminui para €15 mil milhões, terminando o programa em 19 de dezembro.
Fruto das aquisições de dívida pelo BCE no mercado secundário e da melhoria do rating da dívida portuguesa (com a Moody’s a retirar de lixo financeiro em outubro), o juro da nova dívida emitida em 2018 caiu para um mínimo histórico de 1,8%.
A política na zona euro é surpreendida pela vitória dos partidos populistas nas eleições de março em Itália, que viriam a formar, em junho, um governo de coligação entre o Movimento 5 Estrelas (o mais votado) e a Liga Norte, que liderou a aliança de direita.
O risco de uma rotura na zona euro desce em abril para um mínimo de 6,3%, mas volta a subir para 13,2% em outubro com o início do braço de ferro entre o governo italiano e a Comissão Europeia a propósito do défice orçamental para 2019. Entretanto, Roma e Bruxelas chegaram a um acordo e o horizonte de um procedimento contra Itália em janeiro saiu de cena.
O BCE deverá deixar este ano de imprimir as notas púrpura de 500 euros – baptizadas ironicamente de ‘Bin Ladens’, por serem alegadamente as preferidas nas operações de lavagem de dinheiro e de financiamento do terrorismo. Apesar de um duro resgate e de ter sido um dos PIIGS (a designação insultuosa criada pela City) mais fustigado (juntamente com a Grécia), Portugal termina este período de 20 anos no grupo dos alunos médios do euro, segundo a classificação da Bloomberg, juntamente com a Grécia, Irlanda, Luxemburgo e Holanda. Pior, considerados medíocres, Chipre, Espanha, França, Itália e Malta.
Em dezembro, Mário Centeno anuncia um conjunto de reformas da zona euro.