Economia

Panama Papers. Se houvesse um purgatório fiscal, era aí que estavam agora Malta, Luxemburgo, Irlanda e Holanda

Panama Papers. Se houvesse um purgatório fiscal, era aí que estavam agora Malta, Luxemburgo, Irlanda e Holanda
luís barra

O Parlamento Europeu deu um passo em frente com as lições retiradas da maior fuga de informação sobre paraísos fiscais, ao aprovar mais de 200 recomendações elaboradas pela comissão de inquérito aos Panama Papers para combater a fuga de impostos e a lavagem de dinheiro permitidas pelo uso de offshores. Mas a proposta para chamar paraísos fiscais a quatro países da UE chumbou por dois votos

Panama Papers. Se houvesse um purgatório fiscal, era aí que estavam agora Malta, Luxemburgo, Irlanda e Holanda

Micael Pereira

Grande repórter

Foi uma espécie de “tu sabes que eu sei que tu sabes” quais são os quatro paraísos fiscais que existem dentro das fronteiras da União Europeia, mas “não vamos dizer quais são”. Pelo menos, não com todas as letras e muito menos oficialmente. Ao fim de um ano e meio de trabalho intensivo, a comissão de inquérito aos Panama Papers conseguiu que o plenário do Parlamento Europeu aprovasse por larga maioria durante esta quarta-feira mais de 200 recomendações para serem agora endereçadas à Comissão Europeia e a todos os 28 estados-membros da União de forma a que venham a ser mudadas as regras sobre prevenção e combate à fuga de impostos e à lavagem de dinheiro, na sequência das lições tiradas a partir dos casos divulgados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) e pelos seus parceiros de media, incluindo o Expresso em Portugal.

Apesar de uma votação geral muito favorável, com 492 votos a favor, 50 contra e 136 abstenções, a comissão PANA, como foi baptizada, não conseguiu que se chamassem os bois pelos nomes quando obrigou muitos dos políticos que compõem o hemiciclo comunitário a olharem para o seu próprio umbigo. Isto é, para os interesses particulares dos seus próprios países — e, sobretudo, do seu eleitorado.

No edifício Louise Weiss, em Estrasburgo, onde os eurodeputados têm estado a trabalhar esta semana, 210 recomendações e uma lista de 58 emendas foram votadas ao final da manhã, mas assim que chegou a vez da emenda sobre como o Parlamento devia “instar” (verbo muito usado nestas recomendações, que significa “pedir com insistência” e está, por isso, muito longe de ser entendida como uma ordem) “a considerar o Luxemburgo, os Países Baixos, a Irlanda e Malta como paraísos fiscais da UE”, uma diferença de dois votos acabou por chumbar essa ousadia.

Peter Simon, eurodeputado alemão do SPD e autor da emenda que apontava o dedo àqueles quatro estados-membros, fez questão de justificar por escrito o porquê da inclusão dos nomes. As estatísticas oficiais dão conta de economias que funcionam como se fossem nuvens, onde as empresas armazenam enormes lucros mas onde têm uma existência quase virtual: “Segundo os dados mais recentes da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos (OCDE) relativos ao investimento direto estrangeiro, o investimento estrangeiro no Luxemburgo e na Holanda, em conjunto, é superior ao investimento estrangeiro nos EUA, sendo a sua maioria em entidades com finalidade especial sem atividade económica substancial”. Simon lembrou ainda que teoricamente, olhando de novo para as estatísticas, há mais investimento estrangeiro na Irlanda do que na Alemanha e que no caso de Malta esse investimento estrangeiro é 15 vezes maior do que o seu próprio PIB. Mas em todos esses casos os impostos cobrados aproximam-se de zero.

Ainda assim, sem nomes, foi aprovada uma proposta vinda de quatro eurodeputados da Europa da Liberdade e da Democracia Directa (ELDD), um grupo político formado por partidos populistas e radicais — como o Movimento Cinco Estrelas italiano e o AfD (Alternativa para a Alemanha). Referindo-se à “lista negra” de paraísos fiscais aprovada este mês pelo Conselho Europeu — naquela que é, aliás, a primeira lista do género feita pela UE, uma vez que antes a União adoptava as listas da OCDE —, o texto votado favoravelmente pelo hemiciclo sublinha que “pelo menos quatro estados-membros seriam incluídos na lista, se fossem examinados segundo os mesmos critérios da UE” e “expressa a sua preocupação com o facto de a exclusão a priori dos países da UE do exame afetar a legitimidade, credibilidade e eficácia de todo o processo”.

Também por uma margem mínima foi chumbada uma recomendação para que fosse estabelecida uma taxa mínima de IRC obrigatória para todos os estados-membros da União. E que, no fundo, representaria o fim do dumping fiscal exercido pelos quatro países apontados a dedo.

Madeira remetida para mais tarde

Depois, territórios como a Madeira tiveram um tratamento à parte. O plenário aprovou uma recomendação que “insta a Comissão Europeia a apresentar, até ao final de 2018, um relatório de avaliação dos regimes fiscais dos estados‑membros da UE e das jurisdições dependentes, regiões ou outras estruturas administrativas desses estados-membros que facilitam a evasão e a fraude fiscais e têm um impacto potencialmente nocivo no mercado único”, podendo cair neste saco aquela região autónoma portuguesa. Houve uma outra recomendação aprovada esta quarta-feira que “realça a importância de estabelecer uma definição clara de offshore, país ultramarino e região ultraperiférica (RUP)”, destacando o facto de as regiões ultraperiféricas (como é o caso da Madeira) terem de aplicar “a legislação da União”.

O relatório final da comissão PANA, com todo o trabalho de investigação feito ao longo do último ano e meio e que ficou pronto em outubro, referia que “zonas económicas especiais como a Madeira são utilizadas de forma abusiva por grandes sociedades e por indivíduos ricos para esconder lucros sem pagamento de impostos”.

A Madeira foi uma das três referências feitas a Portugal no relatório, a par da transferência de 10 mil milhões de euros para offshores do Panamá ocorrida entre 2011 e 2014 e do caso de corrupção do ex-primeiro-ministro José Sócrates, cujo esquema de alegados pagamentos corruptos passou por companhias offshore nas Ilhas Virgens Britânicas e foi encontrado nos Panama Papers.

Numa sala junto ao centro de imprensa do parlamento que passou a chamar-se Daphne Caruana Galizia, em homenagem à jornalista maltesa do ICIJ envolvida nos Panama Papers e morta em outubro deste ano por uma bomba colocada no seu carro, uma conferência de imprensa foi organizada pelo presidente e pelos relatores da comissão PANA logo a seguir às recomendações terem sido votadas.

Essencialmente, o encontro com os jornalistas serviu para o chairman da comissão, Werner Langen (PPE, Alemanha), e os co-relatores Jeppe Kofod (Socialistas, Dinamarca) e Petr Jezek (Liberais, República Checa) dizerem que a história não acabou aqui — e que outros passos serão dados. Um desses passos ia ser dado nesta própria quarta-feira — com este grupo de eurodeputados a querer influenciar os resultados de uma reunião de trabalho sobre a revisão da última directiva comunitária sobre a prevenção de branqueamento de capitais. “Esperemos que haja progressos, especialmente em relação a incluir nessa revisão o acesso público aos nomes dos beneficiários finais de companhias e de trusts”.

Jeppe Kofod dizia-se satisfeito. “Os resultados ultrapassaram as minhas melhores expectativas. Estou muito feliz com isso. É um marco histórico. Apesar de não chamarmos os quatro países pelos nomes, o texto sobre esses países mantém-se.” O eurodeputado argumentou que “é importante haver estes desacordos de forma aberta e transparente”, para que toda a gente saiba de que lado é que cada um está.

O trabalho continua

Werner Langen explicou que a ideia neste momento é transformar a comissão PANA numa comissão especial de acompanhamento que dure até às próximas eleições europeias, previstas para 2019, que venha depois a ser sucedida por uma comissão permanente dedicada à fuga de impostos e à lavagem de dinheiro. Um plano que dependerá sempre da vontade da futura composição do Parlamento Europeu, num cenário em que o equilíbrio de forças das famílias políticas poderá mudar substancialmente, com um espaço ainda maior ocupado por grupos radicais, à medida que o populismo vai conquistando mais eleitores na Europa — e à custa precisamente da falta de receitas fiscais da maioria dos países para poderem suportar medidas públicas de combate à pobreza, à exclusão e à desigualdade social.

A constante necessidade de se procurar consensos na União Europeia, dificultada pelo facto de ser obrigatória a unanimidade de todos os Estados Membros para questões fiscais (uma das recomendações aprovadas pelo parlamento é para que essa unanimidade passe a maioria qualificada), faz antever uma longa espera até que sejam aplicados muitos dos princípios a que os eurodeputados deram luz verde agora. E explica as críticas com que a nova “lista negra” de paraísos fiscais em vigor na União Europeia tem estado a ser recebida.

Um artigo publicado esta semana pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) chamava a atenção para a circunstância de os 17 territórios incluídos na “lista negra” da UE não abrangerem, por exemplo, as Bermudas, as Ilhas Virgens Britânicas e as Ilhas Caimão. Metade das companhias criadas pela Mossack Fonseca, a operadora offshore que está na origem da fuga de informação dos Panama Papers, tinham sede nas Ilhas Virgens Britânicas. E as Bermudas são o quartel-general da Appleby, a operadora de offshores que está na base da última fuga de informação do ICIJ, os Paradise Papers. Esses territórios têm outra coisa em comum: fazem todos parte do Reino Unido, que até à data ainda são um estado-membro da União Europeia.

Numa “lista negra” feita com os mesmos critérios utilizados pela Comissão Europeia, a organização não-governamental Oxfam Internacional concluiu que se a escolha tivesse sido elaborada de forma imparcial, em vez de 17 teriam de constar 35 países extra-comunitários, incluindo as Ilhas Virgens Britânicas e as Bermudas. E a esse rol seria preciso juntar os quatro estados-membros que o Parlamento Europeu não conseguiu chamar pelos nomes.

O Expresso viajou a Estrasburgo a convite do Parlamento Europeu

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