“Toda a Luz que não podemos ver”: mega-produção da Netflix sobre a Segunda Guerra Mundial não convence
É uma das grandes estreias da Netflix neste último trimestre e conta a história de uma jovem francesa cega e de um soldado alemão que quer largar-se do nazismo. Podem um grande orçamento e um poderoso elenco salvar uma minissérie tão previsível como “Toda a Luz Que Não Podemos Ver”? Nem por isso
José Paiva Capucho
A Primeira e a Segunda Guerra Mundial foram dos eventos mais sangrentos da história, e também provavelmente dos mais rentáveis para o negócio da cultura. A constatação não é livre de polémicas e críticas, mas basta olhar para dois mercados, o do cinema e o da literatura, para perceber que não foge muito à verdade. Tantos e tantos livros de Auschwitz: “A Rapariga de Auschwitz”, “O Carteiro...”, “O Mágico...”, “O Farmacêutico...”, “As Costureiras...”, “O Clube de Xadrez...”, é escolher. Se formos até ao cinema, basta olhar para o sucesso de “A Oeste Nada de Novo”, produção alemã netflixiana sobre os soldados na Primeira Guerra, lançado no ano passado, que não deixa espaço para enganos.
A guerra, viva no nosso dia a dia tanto no Médio Oriente como na Europa, voltou. Os horrores da guerra tornaram-se num marco, que serve os gostos dos obcecados por um dos piores períodos da nossa história coletiva, mas também como coleção de memória para que nunca mais se repita. “Toda a Luz Que Não Podemos Ver”, a nova minissérie da Netflix inspirada no livro premiado com um Pulitzer de Anthony Doerr, realizada por Shawn Levy (“Stranger Things”) e argumento de Steven Knight (“Peaky Blinders”), encaixa que nem uma luva na linha de séries que usam a guerra para criar uma fábula.
É verdade que plataformas de streaming como a Netflix, imersas numa convulsão interior entre readaptação do negócio, despedimento de trabalhadores e mudanças na política de partilha de contas, não se podem queixar do caminho que algumas das suas grandes produções de cinema têm feito este ano. “Maestro”, “The Killer” ou as curtas-metragens de Wes Anderson estão dentro do cardápio de filmes mais esperados do ano e, todos eles, têm dinheiro da gigante norte-americana. História diferente é quando a agulha se vira para as séries.
Depois da estreia da terceira e última temporada de “Sex Education” neste último trimestre de 2023, a Netflix parece um pouco órfã de uma galinha de ovos de ouro no audiovisual, enquanto não chega a nova temporada de “Squid Game”, por exemplo. As séries sobre o consumo de opioides — “Painkillers” ou “The Fall of The House of Usher” — não deslumbram por aí além, apesar de serem conteúdos que entretêm, ou a já longínqua mas certeira sátira “Beef” parece uma memória do ano passado, quando não é.
“Toda a Luz Que Não Podemos Ver” é, por isso, uma espécie de boia de salvação com todos os ingredientes necessários para agarrar o espectador até ao fim do ano: tem atores conhecidos de Hollywood como Hugh Laurie ou Mark Ruffalo; olha para a Segunda Guerra Mundial através de uma jovem cega; tem apenas quatro episódios. Marie-Laure (Aria Mia Loberti, atriz cega que se estreia no grande ecrã, o que se nota demasiado) vive sozinha numa casa em Saint-Malo, comuna francesa na Bretanha, a emitir um programa de rádio, num inglês inconfundível mas sendo francesa na série, para os que procurem um pouco de luz no meio da escuridão que é o domínio dos nazis. Sai pouco de casa, a não ser para comer ostras à noite debaixo de uma ponte. É o que é.
NETFLIX
Estamos em 1944 e os norte-americanos decidiram entrar no conflito com toda a sua artilharia, bombardeando a cidade europeia, tomada pelos nazis, por volta de maio de 1940. O pai de Marie, chaveiro do Museu de História Natural de Paris, voltou para a capital porque os nazis, ou um cada vez mais decrépito sargento Reinhold von Rumpel (Lars Eidinger), anda à procura de uma amaldiçoada joia, “Mar de Chamas”, que promete curar o incurável. O alemão convence-se então que, sem o pai, só resta a filha, a sua última missão para se agarrar à vida antes que os EUA decretem o fim da guerra.
Do outro lado da trincheira, está outro jovem, Werner (Louis Hofmann), órfão alemão que deixa a irmã porque a sua genialidade no campo dos rádios atraiu o interesse do Terceiro Reich. Acaba igualmente em Saint-Malo, fascinado com a emissão de Marie, que usa a mesma frequência de um professor francês (que fala em inglês porque aqui todos falam em inglês) que versa sobre factos e as maravilhas científicas do mundo. Marie passa os seus dias enfiada no sótão a ler as “20 Mil Léguas Submarinas”, obra que serve de código para os norte-americanos saberem onde lançar as bombas. Werner escuta-a enquanto finge que anda a procura dela, a mando dos nazis que restam.
Uma receita conhecida
A série tem, de facto, ingredientes que podiam funcionar, como o cruzamento da história destes dois jovens — que é, segundo a crítica, o ponto forte do livro — e de como duas mentes mais novas, livres do veneno para a alma que foi o nazismo, têm de resistir e sobreviver dentro de uma pequena vila costeira bombardeada por todos os lados. E tem momentos de alguma delicadeza emocional, ainda que agarrados a uma estética de Disney, indolor, não mais eficazes do que uma fantasia de princesas e dragões, que mostra o horror com diálogos banais sobre esperança, enquanto o pai, Daniel Le Blanc (Mark Ruffalo tem dos piores sotaques captados este ano), crente de que a cegueira da filha não é mais do que uma bênção, lhe constrói uma maquete da região para que saiba por onde ir. Também Hugh Laurie, o Tio Etienne, antigo soldado, “tigre enjaulado” em casa por causa dos traumas da Primeira Guerra Mundial, entra nesse binómio da luz e da escuridão como segunda figura paternal que guia as duas personagens principais mas acaba por não ter o destaque merecido para um ator daquela envergadura.
Hugh Laurie
O problema é que “Toda a Luz Que Não Podemos Ver” não é sobre estas relações. É mais um projeto que surge em jeito de aviso de que o passado está aí à porta, de que o nazismo pode estar de regresso, ao som de uma banda sonora apoteótica de fazer pele de galinha, esvaziando estes quatro episódios de uma possibilidade de ser original. É quase garantido que muitos dirão que não passa de uma cópia de outras fábulas, onde só se muda a personagem principal a seu belo prazer, que se aproveitam deste evento trágico para entreter as massas. Tal como a história de “Pedro e o Lobo”, tantos avisos podem acabar com ninguém a querer saber.
Nunca se percebe, por exemplo, porque é que Werner foi sempre bom do início ao fim, ainda que tenha contribuído para milhares de mortes e ensinado a ser puramente mau. Não seria bom ver a sua trajetória de redenção a acabar nos braços de Marie? Por tanto se banalizar o mal em televisão, podemos acabar sem lágrimas, a olhar para uma audiência indiferente. Melhor ficarmo-nos pelo livro — mas convém espreitar a série, ainda assim, para decidir o que fazer. Será difícil para um espectador do streaming, que já possivelmente viu os documentários do que se passou em Auschwitz, já viu a boa ficção e a não tão boa literatura que saiu e continua a sair sobre o século XXI, sentir qualquer apego por esta série.
Depois, também não se consegue compreender como é que a Netflix, tão interessada em ser mais inclusiva e em dar palco a novas vozes de diferentes países, ainda compra um conteúdo todo falado em inglês mas que se passa em França e na Alemanha — onde até os atores alemães não falaram na sua língua nativa. Logo a abrir, Marie diz que não será silenciada. No meio de bombas, prédios a ruir, nazis desesperados e a sua cegueira, talvez não, o que custa a crer. Mas numa televisão próxima, talvez sim.