Quando, em 1995, a Hayward Gallery, em Londres, a convidou a criar uma obra de arte para a exposição “Spellbound: Art and Film”, uma homenagem aos 100 anos da indústria cinematográfica britânica, foi em “Branca de Neve e os Sete Anões”, “Pinóquio” e “Fantasia” que encontrou a inspiração artística. A última, a mais abstrata, ousada e experimental animação de Walt Disney, mereceu uma atenção especial na mostra de 1996.
Sem ver novamente o filme, e recorrendo apenas à memória e às ilustrações de John Culhane sobre “Fantasia”, Paula Rego apropria-se (e vira do avesso) a paródia da Disney ao bailado clássico, criando oito grandes painéis inspirados no grupo de avestruzes que em “Fantasia” interpreta a “Dança das Horas”, um ballet na ópera “La Gioconda”, de Amilcare Ponchielli, estreado em 1876.
Agora, em 2023, dois desses painéis – que, juntos, formam o díptico “Dancing Ostriches from Walt Disney’s ‘Fantasia’” (“Avestruzes Bailarinas do filme ‘Fantasia’ de Walt Disney”) – irão pela primeira vez a leilão no dia 13 de outubro, na feira de arte London Frieze. Com uma base de licitação entre 2,2 e 3,2 milhões de libras britânicas (entre 2,5 e 3,7 milhões de euros), a expetativa da leiloeira Christie’s é que se obtenha um novo recorde para a artista portuguesa.
“É o quadro mais importante da Paula Rego que nós já oferecemos”, garante ao Expresso Pedro Girão, presidente do Conselho Consultivo Internacional da leiloeira Christie’s. “Estamos com boas expetativas.”
De acordo com a informação publicamente disponível, o atual recorde para um quadro de Paula Rego foi obtido em 2015, com o leilão de “The Cadet and his Sister” (“O cadete e a irmã”), um acrílico sobre tela, de 1988, licitado por 1,6 milhões de euros. A tela – que mostra um cadete, de partida para o combate, que se despede da irmã enquanto ela, de joelhos, lhe ata os sapatos – remete para a partida do marido de Paula Rego, Victor Willing, que morreu nesse ano, vítima de esclerose múltipla. São, aliás, as obras dessa série - “The cadet and his sister” (1988), "The Soldier's Daughter" (1987) e “The Policeman's Daughter” (1987) - que possuem uma avaliação mais elevada, diz ao Expresso um especialista no mercado da arte. A última, em particular, pertence à coleção do empresário multimilionário russo, Roman Abramovich, segundo mostrava em setembro de 2023 um artigo do jornal britânico “Guardian”.
Já em leilão, algumas das obras da artista que mais se destacaram, depois de “The Cadet and his Sister”, foram “Looking Out” (1997) e “School for Little Witches” (2009) – vendidas, respetivamente, por 1,4 milhões e 500 mil euros, acima das estimativas das leiloeiras.
De Marlborough a Charles Saatchi
Sendo um díptico de 1995, pertence ao período da artista mais cotado internacionalmente, onde “se nota a maturidade e a perícia da artista, nomeadamente no uso do pastel”, refere Helena de Freitas, atual curadora da Gulbenkian e ex-diretora da Casa das Histórias, instituição criada em Cascais para preservar e divulgar o trabalho da artista. Na sua perspectiva, “Avestruzes Bailarinas” (que recorre a Lila Nunes, a modelo que trabalhava com a Paula Rego, para lhe dar corpo) chegará com “algum conforto” ao valor que lhe serve de base de licitação.
“Este é um díptico muito interessante, no qual toda a ideia do bailado e da bailarina – associada à delicadeza e à leveza da mulher – é transformada numa situação de esforço e de grotesco”, contextualiza. “É como se houvesse uma inversão da representação, do bailado. As mulheres são expostas no seu desamparo, na sua vulnerabilidade, no seu cansaço. É o avesso daquilo a que estamos habituados a ver num bailado, que normalmente é o esforço transformado em beleza.”
Inicialmente concebidos para a exposição sobre o cinema britânico, estes dois painéis em pastel sobre papel colado em alumínio não nasceram dissociados dos restantes.
Os oito painéis constituíam, originalmente, uma obra única. “É uma série inteira de avestruzes, que fazem salas enormes. Todas estas avestruzes a dançarem, numa sala, é um espetáculo”, realça Helena de Freitas. “Há uma dimensão de cena e de representação nestas pinturas. Aliás, a Paula Rego, como pintora e desenhadora, cruzou quase todas as disciplinas artísticas – desde a literatura, à dança, ao cinema, ao teatro, à performance. Tudo isto serve de matéria de base para a artista ficcionar, em pintura, em função das suas próprias narrativas. Ela tem o poder de transformar tudo aquilo em que toca em matéria autoral, sempre focada em temas muito próprios.” As relações de poder e a denúncia da condição feminina são dois temas transversais à sua obra.
Terá sido esse espetáculo que, mais tarde, atraiu Charles Saatchi, que terá adquirido à Marlborough, galeria que até 2020 representava a artista internacionalmente, os oito painéis para a sua coleção de Londres. É conhecido o fascínio do publicitário e colecionador de arte britânico, de origem iraquiana, pelo trabalho da artista portuguesa. Tendo começado a comprar obras de Paula Rego em 1988, quando esta foi tema de uma grande mostra na galeria Serpentine, em Londres, Saatchi foi um dos seus principais impulsionadores no Reino Unido e a nível internacional.
De Saatchi este díptico passou em 2008 para o atual proprietário, que agora o coloca em leilão.
Movimentos no mercado internacional
Questionado pelo Expresso sobre se o Estado tentará adquirir “Avestruzes Bailarinas” em leilão, o Ministério da Cultura não respondeu até à publicação desta notícia. Depois de contabilizada a comissão da Christie’s, com os impostos locais, a obra poderia custar ao Estado, pelo menos, 3,2 milhões de euros, refere ao Expresso um especialista.
Recorde-se que, no ano passado, o Expresso noticiou que o futuro da Casa das Histórias Paula Rego estaria em risco, uma vez que as obras mais relevantes da artista falecida em junho desse ano já não faziam parte o acervo do museu, desenhado pelo arquiteto Souto de Moura e dedicado à obra da pintora. Concretamente, mencionava a redução da equipa e a perda do acervo, que começou a ser retirado pela família – algo que o filho da artista, Nick Willing, contesta, explicando que, além das 535 obras doadas à Casa da Histórias (desenhos e gravuras, não pinturas), foram emprestadas 86 obras, que apenas regressaram ao Reino Unido devido ao Brexit - mas garante que permanecem à disposição do museu.
Nessa edição do Expresso, o colecionador de arte Jorge Capelo publicava uma carta que teria enviado em 2020 ao presidente da câmara de Cascais, à Presidência da República, ao primeiro-ministro e à Fundação Calouste Gulbenkian, ainda antes da artista morrer, na qual alertava para o risco de esvaziamento do acervo fundacional da Casa das Histórias. Considerando “urgente” que “uma entidade com sentido de Estado fizesse algo para que uma parte qualificada da sua obra ficasse em Portugal”, propunha uma seleção de 25 obras que, antes da morte da artista e na sua estimativa, poderiam ser adquiridas por 5,4 milhões de euros, para minimizar o que considerava ser a dispersão definitiva desse espólio.
Na altura, apenas a Gulbenkian terá adquirido duas obras. Mais tarde, e já depois da morte da artista, o Estado adquire “O Impostor”, de 1964 (que não constava nessa lista). A obra, que retrata Salazar de forma satírica, serve para integrar o novo museu que ficará sob gestão do Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
No mercado internacional, têm-se verificado vendas de obras de Paula Rego. No ano passado, a Galeria 111, que sempre representou a artista em Portugal, confirmava ao Expresso que a procura tinha aumentado – e, dois anos antes, a artista trocava a galeria Marlborough pela Victoria Miro, conhecida por uma atitude comercial mais agressiva, para a representar mundialmente.
Mais recentemente, foi notícia a compra das gravuras de Paula Rego sobre o aborto pelo MoMA e pelo MET à Cristea Roberts Gallery, em Londres.