Vinte anos não são um dia. Há quem diga que são uma vida. Seja como for, é o tempo que Hilary Mantel dedicou à trilogia cujo último volume acaba de ser lançado em português. “O Espelho e a Luz” é, depois de “Wolf Hall” e “O Livro Negro” (Editorial Presença), o fim de um longo percurso de perseverança, de investigação e de imersão no passado. Um profundo mergulho literário e histórico na era dos Tudors, nas entranhas da Inglaterra de Henrique VIII pela mão de Thomas Cromwell, o seu secretário e homem de confiança. Quem foi ele? O que o movia? O que vestia? Para onde caminhava?
E para onde caminha hoje esta escritora de 68 anos, que após decifrar os bastidores de outro tempo voltou agora à superfície, à Inglaterra de hoje, do ‘Brexit’, de novo dominada pelo mito nacional da “ilha cercada e contra o mundo”? A Inglaterra onde a escritora está a pensar ser quer ou não acabar os dias?
Em entrevista exclusiva, Dame Hilary Mantel conversou com o Expresso por escrito. Um vai-e-vem de perguntas e respostas, para substituir a conversa que um problema auditivo a impede de ter. Da sua casa em Budleigh Salterton, em Devon, no sul do país, falou sobre os livros, a ficção histórica, a história e o que as distingue. Refletiu sobre o poder e sobre a ambição. E ainda foi generosa ao ponto de desvendar pormenores da sua infância e da dor física que a acossou durante anos.
No fim do livro, o protagonista Thomas Cromwell diz: “Estão a reescrever a minha vida.” Como é que a sua foi reescrita pela trilogia? Quem era Hilary Mantel há 20 anos e quem é agora?
Há 20 anos, dificilmente era reconhecida por um livreiro, ainda que ele estivesse ao pé de uma pilha de livros meus. Agora sou conhecida pelo público e cumprimentada mal atravesso o umbral da minha casa. Esta é a mudança mais óbvia que houve na minha vida. O êxito da trilogia deu-me liberdade, no sentido de ter segurança financeira e de poder escolher os meus próprios projetos. Mas a escrita não se tornou mais fácil — os desafios parecem cada vez maiores. Fiz o esforço consciente de alargar o meu âmbito, e pela primeira vez trabalhei em teatro, algo que desde cedo desejava fazer. E descobri que uma sala de ensaio possui um ambiente muito interessante, o único lugar onde perdi as inibições e a autoconsciência comum aos escritores; parei de tirar notas para mim mesma e deixei-me levar pela onda do trabalho coletivo.
E o que é que significa ter acabado a trilogia? Sente alguma espécie de vazio?
Não sinto que a tenha acabado, porque estou a escrever uma versão de palco, e porque as séries de televisão ainda estão para vir. Sobretudo, porque sei que vou encontrar leitores e falar com eles durante muitos anos. Nesse sentido, este é apenas o começo — são os leitores que fazem o livro, não somente o escritor.
Uma vez referiu que, antes de ter este projeto nas mãos, nunca tinha sentido “a absoluta justeza, a congruência entre um tema e um autor”. Pode explicar essa ‘justeza’?
É a sensação de ter chegado a casa. Reconheces o tema e ele reconhece-te. Acreditas ter chegado ao projeto que te fará usar tudo o que és e testará tudo aquilo que podes fazer.
Que tipo de impulso é necessário para levar um empreendimento como este até ao fim?
Quando cheguei ao terceiro volume, já tinha percebido que a única forma de fazer isto era tornando-o, cada dia, uma prioridade. Se quisermos as recompensas que nos esperam no final, temos de abdicar de algumas coisas pelo caminho, e há anos que a escrita ocupa a maior fatia do meu tempo e atenção. Tenho a sorte de ter um parceiro que compreende este compromisso. Somos ambos pessoas tranquilas, não muito sociais, e satisfeitas com os nossos próprios pensamentos. A nossa vida numa pequena cidade à beira-mar poderá parecer monótona a muita gente, mas permite-nos o tipo de espaço mental e de independência de que ambos precisamos.
Os livros baseiam-se na figura histórica de Thomas Cromwell. Podemos dizer que, acima de tudo, refletem sobre o que é a ambição?
Penso que, se houver um assunto principal, este é o da representação, no sentido mais amplo. Um dos aspetos que me intrigaram desde o início do projeto foi o seguinte: como é que um homem visto como um herói uma geração após a sua morte se converte num vilão? Se ele habitava a imaginação popular, era como uma caricatura — pode-se apontar para peças e filmes. Mas o processo de o tornar um monstro remonta ao século XIX. Fiquei admirada com a preguiça dos historiadores, que retiraram as perceções uns dos outros e negligenciaram o regresso às fontes. Porém, é também verdade que, na cabeça de muita gente, Thomas Cromwell não existia de todo. Isso levantava outra questão: por que razão se apagou da perceção popular? Muitos acreditavam saber tudo sobre a corte de Henrique VIII e, no entanto, esta força poderosa no centro do seu reinado não foi vista nem sentida. Confundiam-no com Oliver Cromwell, o protetor da primeira República inglesa, que é de longe mais famoso, mas pertence ao século posterior. Então quis tentar outra abordagem. Não sendo historiadora, talvez não fosse a pessoa mais indicada para o fazer, mas mais ninguém tinha tentado. Queria escrever para o público em geral. Esperava sugerir que a era dos Tudors — um tema longamente estudado — não fora apenas feita por reis e rainhas, heróis e santos. Foi também feita por pessoas que aparentavam ser comuns e prosaicas, e cujos recursos estavam escondidos. Mas, depois, como é que eu levaria a cabo a tarefa de representar Cromwell? Este foi o meu trabalho durante 15 anos.
Afirmou que aquilo que a atraiu na figura de Thomas Cromwell foi o facto de ele “vir de lado nenhum”. Não tinha apoios — é uma personagem improvável no seu tempo.
A família de Cromwell não era pobre, era obscura. O pai era um pequeno empresário a viver na zona oeste de Londres; tinha uma fábrica de cerveja, um pedaço de terra e era ferreiro. Não sabemos o nome da mãe. Walter Cromwell é citado nos tribunais locais por embriaguez e agressão, e algumas fontes descrevem-no como o brigão do bairro — embora mais tarde se tenha tornado respeitável. Thomas saiu de casa aos 15 anos. Pode ter tido alguns problemas com a lei, ou com o pai, ou ambos, mas nesta fase iniciou a sua aventura europeia, e regressou a casa 12 anos depois, cosmopolita e ambicioso. Era possível naquela época que um homem humilde ascendesse ao entorno do rei, mas em geral faziam carreira na igreja — e uma vez adquirido o estatuto clerical, qualquer desvantagem social ficava anulada. Cromwell não tomou este caminho. Transformou-se num advogado ao serviço do cardeal Wolsey, um político espetacular e patrono das artes. Wolsey empregava centenas de homens capazes, mas Cromwell tornou-se próximo dele. Quando Wolsey perdeu o favorecimento real e foi destruído, Cromwell foi dos poucos subordinados a manterem-se leais. Porém, a morte do cardeal deixou um grande buraco na administração da nação. Cromwell iniciou a sua longa escalada no serviço do rei e não demorou a ser, depois do próprio Henrique, o homem mais poderoso de Inglaterra, conhecido em toda a Europa. O seu segredo era perceber o poder. Quaisquer que fossem as armadilhas dos cargos, os símbolos do estatuto ou os títulos oficiais, ele tinha o verdadeiro poder de efetuar mudanças. Moveu-se fora da hierarquia oficial e das rotas estabelecidas, confiando na relação direta com o rei, e exercendo a sua influência em todos os departamentos do governo. Foi pragmático, pouco cumpridor das regras, e sabia de quem dispor e como; foi clarividente e trabalhador, um prodígio de energia.
Após duas décadas a estudar este período histórico, como o descreve?
Em Inglaterra, designamo-lo de ‘período Tudor’, como se a Inglaterra fosse o único país a ter em conta e os monarcas fossem o aspeto mais importante. Porém, nenhuma nação pode ser considerada isoladamente. Esta é a era da imprensa, das novas ciências, artes e academias, da exploração global, do início dos impérios das Américas, da divisão e da guerra entre cristãos, da supressão da vida de muçulmanos e judeus na Europa ocidental: todas estas coisas importam mais do que os monarcas e as suas vidas privadas. Mas só é possível escrever romances sobre pessoas — os romances concebidos em torno de temáticas geralmente transformam-se em sermões. E pode-se usar a história das pessoas para olhar um pouco além da superfície. Para mim, esta época não tem fronteiras. Estende-se para trás, de Henrique VIII para o primeiro Tudor, o seu pai, e para a história da sua ascensão ao trono. E também para a frente, para as consequências do que Henrique foi e do que fez — nomeadamente uma filha, Elizabeth I, que transportaria a Inglaterra para uma nova era. Por isso, o meu desejo não é generalizar sobre este tempo, mas escolher alguns anos, focar-me rigorosamente num pequeno grupo de pessoas e perguntar como é que o mundo olhava para ele. Este é o contributo que um romancista pode dar.
Disse que os três livros são “sobre todas as coisas importantes, sobre sexo e poder e alta política, manobras de Estado e falsificação e desilusões e mentiras”. O que aprendeu ao fazê-los?
Aprendi que as pessoas ambiciosas e de segundo plano confundem poder com estatuto — foi verdade no reinado de Henrique VIII e parece ser verdade agora. Ao lermos memórias políticas modernas, podemos ver a obsessão pelo estatuto a funcionar: devo misturar-me com pessoas ricas ou com a realeza? O meu cargo no governo é novo e modesto ou um dos mais antigos do Estado? Qual o carro oficial que mereço? O motorista respeita-me? O meu cargo inclui uma residência oficial? Quando visitei o Nº10 de Downing Street [residência oficial do primeiro-ministro britânico], que é essencialmente uma casa de cidade não muito espaçosa, o guia falou-me sobre as rivalidades que existiam por causa de uns palmos de espaço — e sobre a disputa para ter a secretária o mais próxima possível do escritório do primeiro-ministro. Sabendo isto, damo-nos conta de até que ponto as pessoas podem ser compradas pela aparência do poder. E de que modo alguém como Cromwell, que percebe o que é o poder real, pode construir um caminho. Cromwell não ascende seguindo a estrutura ortodoxa do poder. Ele assume o posto de secretário do rei e expande-o em todas as direções, intervindo transversalmente no governo. O posto de secretário não tinha um estatuto elevado nem uma definição clara, mas tinha uma coisa importante: o acesso quase permanente ao homem que importava.
O historiador não pode ingressar no território do não dito e do não formulado, mas o romancista sim.
Começou por escrever ficção histórica e décadas depois regressou a ela. Como é que isso aconteceu?
Escrevi o meu primeiro romance histórico aos 20 e tal anos — um livro intitulado “A Place of Greater Safety”. Mas o final da década de 70 era uma época má para a ficção histórica no mercado, e não consegui publicá-lo. Virei-me então para a ficção contemporânea. Mais tarde, com cinco romances editados, voltei a pegar no projeto, que acabou por ser publicado em 1992. Sempre me vi primeiro como uma romancista histórica. O ‘projeto-Cromwell’ esteve sempre aí, desde muito cedo. Mas tinha de encontrar o momento certo para começar. Sabia que levaria muito tempo, por isso era importante construir a minha carreira até um ponto em que eu pudesse estar ausente sem ser esquecida. O que acabou por me apressar foi perceber que 2009 seria o 500º aniversário da coroação de Henrique. Então, em 2005, comecei finalmente a trabalhar. Pensava que iria escrever apenas um romance. Só a meio do projeto é que pude ver as suas verdadeiras dimensões.
Comentou que a ficção histórica é uma forma de oferecer uma “visão nova”, mais flexível, sobre temas que parecem estáticos ou predeterminados. Pode falar sobre a relação entre rigor histórico e imaginação? E qual a diferença entre um historiador e um escritor de romance histórico?
Passo muito do meu tempo a comparar ‘factos’ que, por vezes, são surpreendentemente diferentes. Parte do meu trabalho, uma vez comparados os factos controversos e escolhida a minha versão, é eliminar a ênfase e a hierarquização dos historiadores — o modo como, pelas escolhas narrativas que fazem, conduzem o leitor para uma interpretação mais do que para outra. Com todas as condicionantes de tempo e de treino — porque não sou uma historiadora —, quero pensar por mim própria. E só o posso fazer tendo como base boa informação, pelo que procuro o mesmo tipo de pormenores que um historiador valorizaria. Ao deparar-se com uma lacuna nos factos, um historiador pode parar; um romancista perguntará: estou perante uma falta real de informação ou penso que existe uma lacuna porque não sou um especialista suficientemente treinado para analisar as fontes? Se estiveres convencido de que certos aspetos da história se perderam e jamais irão ser recuperados, então justifica-se o uso da imaginação. Por vezes, só a imaginação chega lá. As pessoas não agem apenas por motivos lógicos, mas por uma variedade de impulsos não totalmente percebidos e analisados, cuja origem pode ser obscura até para elas próprias. O historiador não pode ingressar no território do não dito e do não formulado, mas o romancista sim.
“São as contradições e a estranheza que dão à ficção histórica o seu valor.” As palavras são suas. O que querem dizer?
O historiador persegue conexões casuais, para suavizar e dar sentido à narrativa, e divide os assuntos humanos em capítulos. Mas um escritor imaginativo pode ultrapassar e ignorar as fronteiras. O calendário nem sempre corresponde à experiência humana do tempo. A memória move-se para trás e para a frente, o que é reprimido irrompe na consciência em alturas inconvenientes. Na vida real, as consequências dos atos raramente são claras, as lições não são aprendidas, não é retirada nenhuma moral. O processo da ficção admite o papel do fortuito e da coincidência nos assuntos humanos — permite o acaso, a ausência do significado que os historiadores persistentemente procuram. O historiador tenta encontrar explicações para os acontecimentos, classificando-os. O romancista pode tolerar os mistérios.
Afirmou que a História nem sempre é ordenada e convincente e que o escritor tem de lidar com isso. Mas pode a literatura distorcer a História? Claude Lanzmann — o realizador do documentário “Shoah” — comentou “As Benevolentes”, de Jonathan Littell, apontando para o perigo de os leitores assumirem o romance como um documento histórico.
A questão da interpretação é sempre levantada nos meus livros. As personagens estão sempre a perguntar a si mesmas o que é que a verdade significa e como pode ser estabelecida. As testemunhas são fiáveis? O seu testemunho é completo? Os hiatos são acidentais ou estão lá por um motivo? Estas são as interrogações que um historiador ou um romancista histórico formulam, e que são também fundamentais para as minhas personagens. Cada afirmação, cada cena vem com a sua hesitação, e o leitor tem de sentir isto — uma falta de fiabilidade profundamente cravada no texto. Não quero que o leitor sinta que pisa terreno firme, porque isso seria uma mentira. Quero que o leitor reflita sobre o tipo de coisas que podem ser conhecidas e o que nunca deveria constar de um registo histórico — e que, portanto, deve ser inventado. Além disso, tem de se considerar a segurança do próprio registo histórico: quem o faz? Quem o conserva?
Sente que o seu trabalho contribuiu para a reavaliação da figura de Thomas Cromwell?
Definitivamente, sim. Tem havido um ressurgimento do interesse nele, além de uma grande biografia feita pelo historiador Diarmaid MacCulloch, que voltou às fontes históricas, fez uma reapreciação e um novo retrato. O nome de Cromwell é agora conhecido, já não é mais um espaço em branco ou uma caricatura.
Como é que se tornou escritora? Por que motivo escolheu esta via?
Estava para ser advogada, mas uma saúde débil e a falta de dinheiro levaram-me a perguntar, aos 20 anos: “O que mais posso fazer?” E como tinha lido tantos romances, senti que poderia escrever um. Para começar, é barato — só precisas de papel. É uma boa saída para alguém interessado em quase tudo, que tem necessidade de controlar a sua própria agenda e que está equipado com uma grande paciência.
“Tenho sido como alguém que, numa ordem religiosa, fez o voto do silêncio.” É a sua descrição do que é a vida de um escritor?
O silêncio e a quietude são inalienáveis. E muitas vezes sinto que a escrita é uma forma avançada de silêncio. Podemos perder-nos deliberadamente num amontoado de palavras. Podemos evadir-nos de definições ao longo de toda a vida. Eu chamaria a isso ‘sucesso’.
Na sua escrita, precisa de reproduzir a textura do passado no sentido de soar novo e vivo. Como faz isso?
Escrever sobre personagens do passado significa tentar experimentar o mundo através dos seus sentidos, que estão organizados de modo diferente dos nossos. Assim, mergulhamos na personagem por meio da imaginação, mas também de informação precisa sobre como vivia e pensava. Podemos perguntar a nós próprios, por exemplo, qual é o som mais alto que a personagem alguma vez ouviu — seriam sinos, um trovão, o disparo de um canhão? Que música escutou? Como é que percebia as cores — que cores lhe estavam disponíveis? O que é que vestia sobre a pele e qual era a sensação? Uma vez que compreendemos como percecionava o mundo, questionamos o que é que percecionava. Uma personagem que está sempre a descrever o seu mundo quotidiano parece um porta-voz do autor, um transmissor de informação — o efeito é tenso e pouco natural. Mas uma personagem que se apercebe do primeiro dia morno de primavera, ou de um novo buraco na estrada, ou da mudança na cara de um amigo, está a fazer algo que parece real.
A escrita é um debate sobre o tempo? Uma espera pelo momento certo?
‘O momento certo’ é uma noção interessante para escritores de ficção histórica, porque precisamos de ter um ponto de observação a partir do qual olhamos para o nosso tema. Temos também de ser capazes de avaliarmo-nos no tempo certo, à procura de assunções e preconceitos. É necessário conhecer-se e conhecer onde se está, e gostar do perigo que decorre de projetar-se a si mesmo no material de escrita.
A década de 1530-1540 foi o período em que se formou a Inglaterra moderna. Que ressonâncias desse tempo encontra no atual, marcado pelo ‘Brexit’? Pode-se afirmar que o sentimento antieuropeu dos ingleses surgiu no tempo de Henrique VIII?
A Inglaterra de Thomas Cromwell era uma parte inextricável da Europa, cultural e economicamente, e o corte com Roma não mudou este facto. O que os ingleses devem compreender sobre aqueles dias — e o que lhes custa mais a perceber — é quão insignificante e pequeno era este país aos olhos dos congéneres europeus. Digo-o numa passagem: “Uma pequena ilha, pobre e fria.” A Inglaterra tinha muitas ovelhas e muita lã para exportar, mas não era um centro cultural ou financeiro. A energia assentava nos grandes blocos de poder — por um lado a França, e pelo outro Espanha e o Sacro Império Romano. Estes eram ricos e ambiciosos em termos territoriais, e os Estados mais pequenos tinham de avaliar a sua posição à luz da amizade ou inimizade com os vizinhos maiores. A estratégia da diplomacia inglesa consistia em apaziguar os grandes poderes e, dependendo de quem estava a cargo desta e de quão astuto fosse, explorar as divisões entre eles. Quando Henrique VIII chegou ao trono, continuou a chamar-se a si mesmo rei de França, embora essa alegação nunca tivesse sido concretizada. Por vezes, dizia ser rei por direito da Escócia — mas o vizinho do norte era beligerante, e estava seguro na sua tradicional aliança com a França. Ninguém pensava em Inglaterra como um grande poder. E mais ninguém no mundo falava a sua língua — os embaixadores nem se davam ao trabalho de a aprender.
Mas a influência de Cromwell foi no sentido de se procurarem novos aliados, certo?
O patrono de Thomas Cromwell, o cardeal Wolsey, foi um homem de Estado que se lançou à tarefa de fazer com que a Inglaterra importasse, conseguindo ter algum peso no palco diplomático. Uns anos depois, após o corte com Roma, Cromwell projetou a Inglaterra no coração da Europa reconfigurada, como aliada dos Estados alemães protestantes e dos países escandinavos. Este novo bloco teria formado um contrapeso eficaz dos restantes poderes. Durante um tempo, Henrique VIII partilhou desta visão, que acabou por naufragar porque, apesar de ter estabelecido uma igreja independente em Inglaterra, não chegou a um acordo com Estados luteranos: era possível um alinhamento político, mas não doutrinal. E a religião era fundamental na mente dos seus contemporâneos. Claro que esta é uma grande simplificação.
Onde fica, então, a Inglaterra?
A ideia de que a Inglaterra podia estar sozinha não fazia sentido na altura, e não faz sentido hoje. Por outro lado, é muito difícil localizar uma força semelhante à ‘opinião pública’ no mundo dos Tudors — uma pessoa comum tinha apenas uma ideia esquemática, incompleta, do mundo exterior, e a perspetiva que tivesse dependeria da geografia. Quem vivesse na costa sul podia ver a França, mas, para quem vivesse em Lancashire, a França era tão longínqua quanto a lua. Já no reinado da filha de Henrique, Elizabeth, a Inglaterra desenvolveu uma identidade firme enquanto país protestante, e a ameaça provinha dos poderes católicos no continente. Era uma ameaça bem real e a Inglaterra deveu a sua sobrevivência ao facto de ser uma ilha. Possivelmente é nessa altura, mais do que no reinado de Henrique, que o mito nacional se ergueu — o da ilha cercada e só contra o mundo. Brotou de um impulso coletivo gerado pelo medo.
Que perspetiva tem da Europa após ter vivido em África e no Médio Oriente durante tantos anos?
Penso que o meu tempo na Arábia Saudita foi para mim o mais proveitoso para adquirir uma perspetiva sobre o ocidente. É estranho viver numa teocracia ou numa sociedade em que a monarquia é tão central. Muitos dos que visitaram este país referem-no, mas viver a experiência da vida quotidiana é outra coisa. No tempo que passei lá, aprendi a questionar as minhas próprias assunções sobre valores que pensava que todos partilhavam. Aprendi sobre o Islão, e também sobre boatos e fake news — como ganham poder numa sociedade fortemente censurada, onde os canais de comunicação não são abertos. Ou onde a população é subeducada e crédula.
Escreveu um livro autobiográfico, “Giving Up the Ghost”, no qual podemos ler: “A história da minha própria infância é uma frase complicada que estou sempre a tentar acabar e deixar para trás.” Como assim?
Começou como umas páginas de escrita privada — estávamos a vender a nossa casa de campo em Norfolk e impus-me a tarefa de listar cada coisa que deitava fora ou guardava. Os objetos incorporam um grande poder: os livros, as fotografias e mesmo os mais banais, como um tapete ou uma peça de loiça. A história dos objetos começou a fundir-se com a da morte recente do meu padrasto, Jack Mantel, e isso levou-me a recordar como ele entrou na minha vida quando eu tinha seis anos. Gradualmente, percebi que estava a escrever um livro, focando-me na minha primeira infância, antes de Jack. Depois, a luz apaga-se até aos anos da adolescência, e volta a apagar-se até os meus 20 anos, já a lutar contra a doença que me tornou incapaz de conceber uma criança. Penso que foi uma forma de falar comigo própria sobre assuntos que me eram difíceis de abordar — nenhum escritor quer enfrentar assuntos fáceis. A conexão com a minha infância tem sido sempre muito forte e é onde reside a minha identidade — enquanto oriunda do norte e geneticamente irlandesa, enquanto mulher da classe trabalhadora, enquanto alguém que teve de carregar com as aspirações e expectativas daqueles que não tiveram oportunidades ou saídas nas suas próprias vidas. Foi um modo de dizer ‘obrigada’ às pessoas que me deram vida e forma, incluindo aquelas que morreram antes de as conhecer.
Vai voltar à escrita autobiográfica?
Talvez, de modo conciso. Muitas vezes recorri à ficção curta para falar da minha vida.
Como referiu, tem vindo a lutar contra a dor física desde a adolescência. Alguma vez pensou em escrever sobre a dor?
Durante muitos anos sofri de endometriose, e das tentativas de a curar; as duas juntas arruinaram o meu corpo. Mas fui muito ajudada por uma cirurgia realizada em 2011. Embora demorasse dois anos a recuperar, já não tenho dores permanentes. Nunca voltarei a ter um corpo ‘normal’ — isso é-me inacessível. Tenho de racionar a minha energia e nunca sinto o meu corpo como fiável. Mas encontrei maneiras de superar a situação. Interessa-me a cura num sentido mais abrangente e, o ano passado, fui nomeada membro honorário da Sociedade Britânica de Psicanálise. Estou tão orgulhosa disso como de um qualquer prémio literário.
Ao longo dos anos, escreveu sobre as mudanças do seu corpo, sobre a diferença e sobre o desconforto. É uma forma de compromisso social?
É, sim. Porque há uma dimensão política naquilo que me aconteceu — não ter conseguido, enquanto jovem mulher, que ouvissem o meu sofrimento. Foi-me dito que estava a imaginar a minha dor, ou que estava sob stresse — que era uma perfeccionista ansiosa. Todas as falhas foram depositadas em mim, sem que se encontrasse a falha real, o dano físico que estava a acontecer sem ser visto. Sei que milhares de mulheres têm experiências similares. A doença que me atacou permanece mal compreendida e subdiagnosticada. Em média, demora-se sete anos entre as primeiras queixas de uma mulher e o início do tratamento. Mas a questão não é apenas a doença. É o facto de a sociedade ter um corpo standard — e de este ser, ainda hoje, o masculino. Percebi isto ao falar com cientistas da dor: as mulheres têm geralmente uma experiência da dor diferente, que precisa de protocolos diferentes para a aliviar. A investigação baseia-se no corpo e na experiência do homem. Por outro lado, como pessoa com uma presença pública, consegue imaginar a frequência com que me perguntam porque é que não tive crianças? Não é uma questão que seja normalmente endereçada aos homens.
Nestes dias, o que a faz feliz?
Autodeterminação — que possuo num grau muito mais elevado do que era costume. Embora aceite que o controlo sobre as nossas vidas é em grande medida uma ilusão. Somos levados na corrente do nosso tempo.
A última coisa que Cromwell vê antes de morrer é a luz. Então, existe esperança no mundo?
Sou muito esperançosa, mesmo neste ano escuro. É o único que se pode ser. De outro modo, os nossos esforços paralisariam. Cromwell morre com a esperança de uma vida após a morte, que é característica do seu tempo. É o universo em que viveu, por isso pareceu-me justo que morresse também nele.
O que gostaria de fazer agora que acabou a sua magnus opus? Qual é o próximo capítulo da sua vida?
Quando as condições o permitirem, espero trabalhar mais no campo do teatro. Estou a fazer um livro de fotografias, “The Wolf Hall Picture Book”, em colaboração com o ator Ben Miles e o seu irmão George. Tenho muitos projetos de escrita inacabados e não começados. E estou a pensar onde quero passar os últimos dias da minha vida, se em Inglaterra ou fora dela.
É necessário conhecer-se e conhecer onde se está, e gostar do perigo que decorre de projetar-se a si mesmo no material de escrita.
A escrita é um debate sobre o tempo? Uma espera pelo momento certo?
‘O momento certo’ é uma noção interessante para escritores de ficção histórica, porque precisamos de ter um ponto de observação a partir do qual olhamos para o nosso tema. Temos também de ser capazes de avaliarmo-nos no tempo certo, à procura de assunções e preconceitos. É necessário conhecer-se e conhecer onde se está, e gostar do perigo que decorre de projetar-se a si mesmo no material de escrita.
A década de 1530-1540 foi o período em que se formou a Inglaterra moderna. Que ressonâncias desse tempo encontra no atual, marcado pelo ‘Brexit’? Pode-se afirmar que o sentimento antieuropeu dos ingleses surgiu no tempo de Henrique VIII?
A Inglaterra de Thomas Cromwell era uma parte inextricável da Europa, cultural e economicamente, e o corte com Roma não mudou este facto. O que os ingleses devem compreender sobre aqueles dias — e o que lhes custa mais a perceber — é quão insignificante e pequeno era este país aos olhos dos congéneres europeus. Digo-o numa passagem: “Uma pequena ilha, pobre e fria.” A Inglaterra tinha muitas ovelhas e muita lã para exportar, mas não era um centro cultural ou financeiro. A energia assentava nos grandes blocos de poder — por um lado a França, e pelo outro Espanha e o Sacro Império Romano. Estes eram ricos e ambiciosos em termos territoriais, e os Estados mais pequenos tinham de avaliar a sua posição à luz da amizade ou inimizade com os vizinhos maiores. A estratégia da diplomacia inglesa consistia em apaziguar os grandes poderes e, dependendo de quem estava a cargo desta e de quão astuto fosse, explorar as divisões entre eles. Quando Henrique VIII chegou ao trono, continuou a chamar-se a si mesmo rei de França, embora essa alegação nunca tivesse sido concretizada. Por vezes, dizia ser rei por direito da Escócia — mas o vizinho do norte era beligerante, e estava seguro na sua tradicional aliança com a França. Ninguém pensava em Inglaterra como um grande poder. E mais ninguém no mundo falava a sua língua — os embaixadores nem se davam ao trabalho de a aprender.
Mas a influência de Cromwell foi no sentido de se procurarem novos aliados, certo?
O patrono de Thomas Cromwell, o cardeal Wolsey, foi um homem de Estado que se lançou à tarefa de fazer com que a Inglaterra importasse, conseguindo ter algum peso no palco diplomático. Uns anos depois, após o corte com Roma, Cromwell projetou a Inglaterra no coração da Europa reconfigurada, como aliada dos Estados alemães protestantes e dos países escandinavos. Este novo bloco teria formado um contrapeso eficaz dos restantes poderes. Durante um tempo, Henrique VIII partilhou desta visão, que acabou por naufragar porque, apesar de ter estabelecido uma igreja independente em Inglaterra, não chegou a um acordo com Estados luteranos: era possível um alinhamento político, mas não doutrinal. E a religião era fundamental na mente dos seus contemporâneos. Claro que esta é uma grande simplificação.
Onde fica, então, a Inglaterra?
A ideia de que a Inglaterra podia estar sozinha não fazia sentido na altura, e não faz sentido hoje. Por outro lado, é muito difícil localizar uma força semelhante à ‘opinião pública’ no mundo dos Tudors — uma pessoa comum tinha apenas uma ideia esquemática, incompleta, do mundo exterior, e a perspetiva que tivesse dependeria da geografia. Quem vivesse na costa sul podia ver a França, mas, para quem vivesse em Lancashire, a França era tão longínqua quanto a lua. Já no reinado da filha de Henrique, Elizabeth, a Inglaterra desenvolveu uma identidade firme enquanto país protestante, e a ameaça provinha dos poderes católicos no continente. Era uma ameaça bem real e a Inglaterra deveu a sua sobrevivência ao facto de ser uma ilha. Possivelmente é nessa altura, mais do que no reinado de Henrique, que o mito nacional se ergueu — o da ilha cercada e só contra o mundo. Brotou de um impulso coletivo gerado pelo medo.
Que perspetiva tem da Europa após ter vivido em África e no Médio Oriente durante tantos anos?
Penso que o meu tempo na Arábia Saudita foi para mim o mais proveitoso para adquirir uma perspetiva sobre o ocidente. É estranho viver numa teocracia ou numa sociedade em que a monarquia é tão central. Muitos dos que visitaram este país referem-no, mas viver a experiência da vida quotidiana é outra coisa. No tempo que passei lá, aprendi a questionar as minhas próprias assunções sobre valores que pensava que todos partilhavam. Aprendi sobre o Islão, e também sobre boatos e fake news — como ganham poder numa sociedade fortemente censurada, onde os canais de comunicação não são abertos. Ou onde a população é subeducada e crédula.
Escreveu um livro autobiográfico, “Giving Up the Ghost”, no qual podemos ler: “A história da minha própria infância é uma frase complicada que estou sempre a tentar acabar e deixar para trás.” Como assim?
Começou como umas páginas de escrita privada — estávamos a vender a nossa casa de campo em Norfolk e impus-me a tarefa de listar cada coisa que deitava fora ou guardava. Os objetos incorporam um grande poder: os livros, as fotografias e mesmo os mais banais, como um tapete ou uma peça de loiça. A história dos objetos começou a fundir-se com a da morte recente do meu padrasto, Jack Mantel, e isso levou-me a recordar como ele entrou na minha vida quando eu tinha seis anos. Gradualmente, percebi que estava a escrever um livro, focando-me na minha primeira infância, antes de Jack. Depois, a luz apaga-se até aos anos da adolescência, e volta a apagar-se até os meus 20 anos, já a lutar contra a doença que me tornou incapaz de conceber uma criança. Penso que foi uma forma de falar comigo própria sobre assuntos que me eram difíceis de abordar — nenhum escritor quer enfrentar assuntos fáceis. A conexão com a minha infância tem sido sempre muito forte e é onde reside a minha identidade — enquanto oriunda do norte e geneticamente irlandesa, enquanto mulher da classe trabalhadora, enquanto alguém que teve de carregar com as aspirações e expectativas daqueles que não tiveram oportunidades ou saídas nas suas próprias vidas. Foi um modo de dizer ‘obrigada’ às pessoas que me deram vida e forma, incluindo aquelas que morreram antes de as conhecer.
Vai voltar à escrita autobiográfica?
Talvez, de modo conciso. Muitas vezes recorri à ficção curta para falar da minha vida.
Como referiu, tem vindo a lutar contra a dor física desde a adolescência. Alguma vez pensou em escrever sobre a dor?
Durante muitos anos sofri de endometriose, e das tentativas de a curar; as duas juntas arruinaram o meu corpo. Mas fui muito ajudada por uma cirurgia realizada em 2011. Embora demorasse dois anos a recuperar, já não tenho dores permanentes. Nunca voltarei a ter um corpo ‘normal’ — isso é-me inacessível. Tenho de racionar a minha energia e nunca sinto o meu corpo como fiável. Mas encontrei maneiras de superar a situação. Interessa-me a cura num sentido mais abrangente e, o ano passado, fui nomeada membro honorário da Sociedade Britânica de Psicanálise. Estou tão orgulhosa disso como de um qualquer prémio literário.
Ao longo dos anos, escreveu sobre as mudanças do seu corpo, sobre a diferença e sobre o desconforto. É uma forma de compromisso social?
É, sim. Porque há uma dimensão política naquilo que me aconteceu — não ter conseguido, enquanto jovem mulher, que ouvissem o meu sofrimento. Foi-me dito que estava a imaginar a minha dor, ou que estava sob stresse — que era uma perfeccionista ansiosa. Todas as falhas foram depositadas em mim, sem que se encontrasse a falha real, o dano físico que estava a acontecer sem ser visto. Sei que milhares de mulheres têm experiências similares. A doença que me atacou permanece mal compreendida e subdiagnosticada. Em média, demora-se sete anos entre as primeiras queixas de uma mulher e o início do tratamento. Mas a questão não é apenas a doença. É o facto de a sociedade ter um corpo standard — e de este ser, ainda hoje, o masculino. Percebi isto ao falar com cientistas da dor: as mulheres têm geralmente uma experiência da dor diferente, que precisa de protocolos diferentes para a aliviar. A investigação baseia-se no corpo e na experiência do homem. Por outro lado, como pessoa com uma presença pública, consegue imaginar a frequência com que me perguntam porque é que não tive crianças? Não é uma questão que seja normalmente endereçada aos homens.
Nestes dias, o que a faz feliz?
Autodeterminação — que possuo num grau muito mais elevado do que era costume. Embora aceite que o controlo sobre as nossas vidas é em grande medida uma ilusão. Somos levados na corrente do nosso tempo.
A última coisa que Cromwell vê antes de morrer é a luz. Então, existe esperança no mundo?
Sou muito esperançosa, mesmo neste ano escuro. É o único que se pode ser. De outro modo, os nossos esforços paralisariam. Cromwell morre com a esperança de uma vida após a morte, que é característica do seu tempo. É o universo em que viveu, por isso pareceu-me justo que morresse também nele.
O que gostaria de fazer agora que acabou a sua magnus opus? Qual é o próximo capítulo da sua vida?
Quando as condições o permitirem, espero trabalhar mais no campo do teatro. Estou a fazer um livro de fotografias, “The Wolf Hall Picture Book”, em colaboração com o ator Ben Miles e o seu irmão George. Tenho muitos projetos de escrita inacabados e não começados. E estou a pensar onde quero passar os últimos dias da minha vida, se em Inglaterra ou fora dela.
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