Cultura

Morreu Jorge Salavisa: senhor excêntrico da dança e da arte da gentileza

Jorge Salavisa
Jorge Salavisa
António Pedro Ferreira

Salavisa faleceu na madrugada de segunda-feira, vítima de doença. Tinha 81 anos

Claudia Galhós

Morreu o senhor da dança. Era um senhor, um senhor gentil, excêntrico (“nunca consegui vencer a excentricidade que herdei da minha mãe e das minhas tias maternas”, como escreveu nas suas memórias “Jorge Salavisa – Dançar a Vida”, D. Quixote, 2012) que acarinhou a dança, os bailarinos e os coreógrafos ao longo de toda a sua vida, mesmo depois de uma carreira de bailarino internacional que o levou a conhecer intimamente figuras míticas como Margot Fonteyn ou Rudolf Nureyev, que tratava por Rudi.

Jorge Salavisa dizia frequentemente que, aos 35 anos, deixaria de dançar. E em resposta, Margot Fonteyn dissuadia-o da ideia, elogiando-lhe as qualidades de bailarino. Errou por muito pouco. Dançou em companhias como a do Marquês de Cuevas, o Ballet National Populaire, de Roland Petit (com Jean Vilar ou Zizi Jeanmaire). Em Londres dançou para o London Festival Ballet e o New London Ballet. Quase acertou na idade da reforma de bailarino: tinha 36 anos quando passa a assistente de diretor artístico, em 1975, no New London Ballet.

Em 1977 está de volta a Lisboa, para dirigir o Ballet Gulbenkian (onde fica até 1996). A sua marca é deixada na história do BG (extinto em 2005) em dois aspetos determinantes: pelas oportunidades criadas para o surgimento de novos coreógrafos, por via do retomar dos estúdios experimentais (iniciados por Milko Sparemblek em 1972, onde Vasco Wellenkamp se iniciara e que, entretanto, haviam sido interrompidos), para abrir a possibilidade do surgimento de novos coreógrafos – Olga Roriz ou Vera Mantero começaram aqui; em segundo, por desafiar a dança ao diálogo com outras artes: o icónico “Só Longe Daqui” (1984) em que Vasco Wallenkamp colaborou com Ricardo Pais foi a primeira experiência – Jorge decidiu convidar Ricardo Pais depois de ter visto, no Teatro da Graça, em Lisboa, em 1983, “Tanza Variedades”, que o impressionou. “Só Longe Daqui” antecipa a apresentação de espetáculos de dança-teatro que o ACARTE programa a partir de 1987.

Segue-se a Companhia Nacional de Bailado, que dirige entre 1998 e 2001. Marca dessa passagem é uma controversa tentativa de renovação da companhia e do seu repertório, que para a história deixa a coreografia “Lisbon Piece” (1998) de Anne Teresa de Keersmaeker, num acontecimento inédito de a coreógrafa belga criar para uma companhia que não a sua, a Rosas.

Talvez de forma inicialmente surpreendente, em 2002 assume a direção do Teatro São Luiz, abrindo a sua conceção de direção artística ao campo vasto de todas as artes. Mas talvez isto não devesse surpreender assim tanto pelo que aqui já se escreveu e porque a sua relação com a dança foi sempre relacional com outras artes, como ele mesmo partilha na sua biografia: “Hoje estou muito grato à dança. A ela devo incondicionalmente uma vida fantástica, repleta de alegrias e de concretizações. Claro que fui ajudado pela minha constante atenção e curiosidade pelo teatro, pela música e pela literatura.”

Esteve quase dez anos a dirigir o Teatro São Luiz (de 2002 a 2010) e foi ele que programou “Um Festival Pina Bausch” (em 2008) e inscreveu Lisboa na história desta mítica coreógrafa: foi ali que Pina dançou pela última vez a sua mais icónica peça, “Cafe Müller”, já doente, embora ainda não se soubesse; morreria no ano seguinte.

Jorge Salavisa foi ainda programador e diretor artístico na Lisboa 94 Capital Europeia da Cultura, professor no Conservatório de Dança e em companhias estrangeiras. Em 2011 Marco Martins realizou um documentário sobre a sua vida, “Keep Going” e, em 2012, lança a sua autobiografia “Jorge Salavisa – Dançar a Vida”, onde começa por partilhar a sua relação com a morte, na luta contra um cancro agressivo que o levou a pensar desistir de viver. Quando dançou pela última vez, ou pensava que dançava pela última vez (mais tarde, os imponderáveis da vida e a doença súbita de um bailarino da New London Ballet obrigara-o a regressar a palco para dançar “Othelo”), prevendo que ia abandonar a companhia não se despediu de ninguém. Escreveu no seu livro de memórias, “quem me conhece bem sabe que detesto despedidas. Seja qual for a ocasião, nunca digo adeus; ao longo da minha vida, o até logo tem provado ser mais lógico e bem mais animador”. Jorge Salavisa faleceu na madrugada de segunda-feira, vítima de doença. Tinha 81 anos Até logo Jorge, senhor excêntrico da dança e de todas as artes.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate