Cultura

“Retrato da Rapariga em Chamas”: um fogo que arde e que se vê

Adèle Haenel interpreta Héloïse, a alma rebelde de “Retrato da Rapariga em Chamas”
Adèle Haenel interpreta Héloïse, a alma rebelde de “Retrato da Rapariga em Chamas”

O desejo entre duas mulheres — uma pintora e a sua modelo — é o coração de “Retrato da Rapariga em Chamas”, o filme em que Céline Sciamma descobre o romanesco

A quarta longa-metragem de Céline Sciamma é também a mais sólida da cineasta até à data. Abriu-lhe as portas da competição de Cannes do ano passado e, no final, a realizadora deixaria a Croisette com um prémio de Melhor Argumento e também uma Queer Palm, prémio esclarecedor de uma trincheira importante para ela. Outro facto surpreendente: é um filme de época, atento ao tempo real dos gestos das personagens nas diferentes etapas, e filmado sobretudo em plano sequência. Até aqui, Céline só incidira no tempo presente (“Naissance des pieuvres”, 2007; “Tomboy”, 2011...). Parecia longe de querer assumir o romanesco, até o melodrama. “Retrato da Rapariga em Chamas” é, pois, uma inflexão acentuada no seu percurso, trazendo uma nova dinâmica na abordagem a questões de igualdade e de género no discurso amoroso.

Mas vamos por partes: entremos no filme. Este ‘rapariga em chamas’ leva-nos para a França da segunda metade do século XVIII, é necessário precisar que estamos em 1770, antes da Revolução. Pintora e professora, Marianne (Noémie Merlant) recorda em flashback o momento em que a contratam para pintar o retrato da filha de uma condessa, Héloïse (Adèle Haenel), e as circunstâncias especiais da dita encomenda. Héloïse acaba de deixar abruptamente uma vida monástica após o suicídio da irmã mais velha. É persuadida pela mãe (Valeria Golino) a aceitar bom casamento e as regras sociais de então ditam que o seu retrato de solteira deve ser feito. Só que Héloïse tem alma rebelde, recusa-se a posar e até em aparecer em público, já mandou outros pintores embora — recusa, no fundo, o destino que lhe foi imposto.
Então, Marianne entra em casa de Héloïse não como pintora mas como dama de companhia. Procura ganhar-lhe a confiança, acompanha-a em longos passeios pela costa, só pega no pincel em segredo quando a noite cai. E neste fluxo de olhares, de gestos, mas também de não-ditos que convidam a sensualidade e o erotismo, as duas jovens mulheres começam a sentir-se mutuamente atraídas. “Escrevi este filme como uma arquitetura de desejos, não como uma intriga, e isso renovou muito a narrativa dos meus filmes”, contou-nos a realizadora em janeiro, em Paris, nos encontros da Unifrance.

“Por exemplo, eu tinha o desejo de, a um determinado momento, pegar fogo àquela personagem. E incendiei-a. Tinha o desejo de fazer ouvir ‘O Verão’ de Vivaldi sobre o rosto de Adèle. E isso aconteceu. Queria contar uma história de amor que se construísse unicamente pelo desejo, só por ele, um desejo puro, sem convenções. Tentei restituir a fenomenologia e a experiência da paixão perseguindo estas dúvidas: o que significa filmar o desejo? O que significa escrevê-lo, pô-lo em cena, dar-lhe uma encarnação? O retrato começa por aqui.”

Várias questões se abrem ao filme, uma delas liga-se à ideia do pintor e do seu modelo, tema outrora caro, hoje muito menos, ao cinema francês (pense-se no “La belle noiseuse” de Rivette): o que mais conta? O retrato, ou a rapariga que o título diz estar em chamas? Há um plano extraordinário lá para a frente, num momento em que as duas mulheres já estão completamente sideradas uma pela outra, em que Héloïse posa com um espelho no ventre e no reflexo desse espelho está Marianne. Ora, “Retrato da Rapariga em Chamas” revisita a relação pintor/modelo mas abandonando a ideia da musa, da ‘mulher fetichizada’, tão inspiradora como silenciosa.

O que Sciamma, ao invés, nos diz é que há uma dinâmica de colaboração entre quem pinta e é pintado, ou entre quem filma e é filmado: “na rodagem” — fala novamente a cineasta — “eu estava a filmar o retrato do retrato a fazer-se...” Aquela solidariedade feminina é notória, repare-se, no vínculo que Marianne e Héloïse vão manter com a criada Sophie, personagem muito mais importante do que parece. “Sophie sela um pacto de amizade que ultrapassa a relação de classes. Não a tratei como um acessório da ficção, pelo contrário, quis retirá-la da convenção do seu papel de criada e reforçar a sororidade — que é, ontem como hoje, uma questão política.”

UM FILME DE COMBATE

“Retrato da Rapariga em Chamas” é um filme em colisão com convenções e preconceitos — desde logo o da homossexualidade — e não é menos importante procurar nele uma perspetiva histórica que, como se verá, tem muito que ver com o presente. Céline Sciamma está a falar-nos de uma pintora de finais de Setecentos em França, numa altura em que o papel das mulheres na arte passava sobretudo por posar, não por pintar. “Mas elas existiram, foram até numerosas, eu sabia muito pouco delas antes de me documentar para o filme”, contou-nos. “Élisabeth-Louise Vigée-Le Brun, Artemisia Gentileschi ou Angelika Kauffmann são apenas as mais conhecidas. Fizeram carreira no retrato, essencialmente. Alguns dos seus quadros pertencem a coleções de grandes museus. Porém, não as deixaram entrar nos anais da História da Arte. Como pintoras, continuam esquecidas, num triste anonimato que me emociona e me entristece também.”

Acontece que esta batalha pela igualdade de géneros já vem de longe no percurso de Sciamma, é muito anterior à exposição dos crimes de Hollywood que deram origem ao #MeToo — e tem hoje em França, no rosto de Adèle Haenel (que é companheira de Sciamma na vida), a sua maior guerreira. Também Adèle denunciou no ano passado os abusos sexuais de que foi alvo quando iniciou a carreira. E ainda há dias, quando o César de Melhor Realização foi atribuído a Roman Polanski, fez ela o que se sabe: abandonou a sala em protesto.

Ao falarmos com Sciamma, quisemos saber se Marianne era o seu alter ego. Como se na personagem existisse uma ponte entre os olhos da realizadora e a atriz. “A questão do autorretrato é inconsciente. Mas é uma questão sem segredo: Marianne não é uma representação secreta de mim própria. O seu trajeto, a sua reação às emoções, não são os meus. Por outro lado, é verdade que este filme me é muito íntimo, pela crónica de amor que se vai encarnando, pela sua natureza memorial, pela aparição daqueles fantasmas. Às tantas perdemos o controlo sobre estes efeitos de espelho. Mas eu sei que é um filme que fala muito do meu imaginário. E fala do meu presente.”

O Expresso viajou a convite da Unifrance

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RETRATO DA RAPARIGA EM CHAMAS
De Céline Sciamma
Com Noémie Merlant, Adèle Haenel, Luàna Bajrami, Valeria Golino (França)
Drama M/12

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