A máquina precisa de amigos
O novo disco de Júlio Resende olha para a dicotomia homem/máquina com esperança. Da junção entre piano e eletrónica pode nascer uma Cinderela, acredita o pianista
O novo disco de Júlio Resende olha para a dicotomia homem/máquina com esperança. Da junção entre piano e eletrónica pode nascer uma Cinderela, acredita o pianista
Jornalista
esde cedo que o piano é um fiel amigo de Júlio Resende. Nascido em Faro, o músico que acaba de lançar pela Sony Music o álbum “Cinderella Cyborg” começou a ter aulas daquele instrumento aos quatro anos, depois de o pai lhe comprar um teclado. Falamos de uma vocação? Ele hesita. “Há qualquer coisa de vocacional, não por ter acontecido tão cedo, mas por me ter acompanhado desde então. Há coisas que as pessoas começam e depois largam. Eu nunca larguei”, explica, referindo-se ao piano como o seu “brinquedo favorito, desde sempre”. Ao longo da vida, o algarvio teve outras paixões. O curso de Filosofia, por exemplo, foi levado até ao fim, mas posto de parte quando Júlio Resende percebeu que não teria tempo para ser “professor de manhã e à tarde e músico à noite”. Hoje, depois de vários discos e numerosas colaborações, encontrou “a oportunidade” de traduzir em canções uma “dialética” que há algum tempo lhe ocupava o pensamento: a do homem/máquina.
Contrariando a diabolização de máquina, a abordagem de Júlio Resende vai no sentido de mostrar que “embora o homem tenha tendência para pensar na tragédia, podem acontecer coisas muito boas” quando as pessoas se aliam às coisas. “Dá-me um bocado de azia a ideia negativa que há sobre a máquina”, confessa. “A máquina tem um construtor, humano, e é ele o responsável pela forma como lida com a máquina e como se junta a ela. E a máquina tem tido serviços maravilhosos! Tenho amigos que viveram melhor graças ao pacemaker, e são eles o cyborg perfeito”, ilustra, referindo-se ao título do seu novo disco. “A ideia de Cinderela tem que ver com, no meio da tragédia, haver qualquer coisa que emerge e que, no final, se torna mais bela.”
Musicalmente, esta dicotomia traduz-se na junção de sons acústicos e eletrónicos. “A eletrónica tem um mundo maravilhoso e, para mim, era um grande desafio combinar as exigências do mundo acústico com as do mundo mecânico. Um dos temas [deste disco] tem sons de relógios, que, combinados com as tecnologias, constroem um beat e uma dança que a bateria não é capaz de fazer. Juntar a bateria a isso é mais um acrescento. E juntar o piano — acústico, sem tomada — é mais uma coisa interessante”, argumenta o músico e compositor, atualmente deslumbrado pelas possibilidades da soma. “O piano permite-me executar as minhas ideias base. É um instrumento com muitas teclas e muito alcance, que consegue pensar a música no geral, mas de momento aquilo de que mais gosto é o que se pode juntar ao piano”, diz, dando o exemplo do disco que fez a partir de fados de Amália [“Amália por Júlio Resende”, de 2013]. “O biógrafo da Amália, Vítor Pavão dos Santos, mandou-me uma mensagem no Facebook a dizer: ‘a sua homenagem é aquela que a Amália amaria’. Isso deixou-me muito sensibilizado, ainda que seja uma incógnita saber o que ela de facto gostava.”
No alinhamento de “Cinderella Cyborg”, destaca-se o single ‘LisbonHood’, para o qual Júlio Resende convidou o fadista Peu Madureira e Sam Azura, rapper alemão a viver em Portugal. “O Sam escreveu a letra, depois de eu lhe mostrar a música e lhe pedir que escrevesse uma carta de amor à cidade, já que é um estrangeiro que adora Lisboa.” Também o título ‘Tema Bonito para o Salvador’ desperta atenção, mas aqui Salvador não é apenas o amigo, colaborador e vencedor da Eurovisão. “Também é o meu filho, que tem o mesmo nome”, esclarece. “Quando o conheci, o Salvador cantava de modo muito bonito. Mais do que a técnica ou a parte cerebral, dizia as coisas com o coração, e eu sempre gostei de pessoas emocionalmente musicais.” Atualmente a trabalhar no próximo disco de Salvador Sobral, o homem que este ano escreveu a canção que Emmy Curl levou ao Festival da Canção, e que concretizou o sonho de partilhar palco com Caetano Veloso, acompanhando o brasileiro e Sobral ao piano, concorda com a definição que Nuno Artur Silva engendrou para a sua obra: “música de fronteira”. “Eu tento não ter fronteiras. Talvez seja isso que ele quer dizer: não se sabe bem onde pertence esta música.”
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