Cultura

Como o algodão moldou o mundo

“O COMÉRCIO DE ALGODÃO EM NOVA ORLEÃES” Cena da vida quotidiana dos comerciantes de algodão no estado do Luisiana, imortalizada pelo artista francês Edgar Degas, em 1873
“O COMÉRCIO DE ALGODÃO EM NOVA ORLEÃES” Cena da vida quotidiana dos comerciantes de algodão no estado do Luisiana, imortalizada pelo artista francês Edgar Degas, em 1873

A história de como uma 'commodity' deu origem à globalização do mundo e transformou o capitalismo. “Empire of Cotton” foi eleito como um dos melhores livros de 2015 pelo 'The New York Times'


Cada século da História é marcado por uma matéria-prima. O petróleo marcou o século XX, mas antes disso, no século XIX, foi o algodão que reinou. Muito mais, afirma o autor do livro, do que o açúcar, que foi, sem dúvida, a 'commodity' do século XVIII. Na opinião de Sven Beckert, nascido na Alemanha, historiador e professor em Harvard de História norte-americana, o algodão foi o motor da revolução industrial, semente do movimento de globalização e impulsionador do capitalismo moderno.

“Empire of Cotton”, distinguido recentemente pelo 'The New York Times' como um dos melhores livros de 2015, analisa os fenómenos sociais, políticos, económicos e culturais que foram determinados pela indústria do algodão que, às portas da Guerra Civil norte-americana, em 1861, era alimentada por uma força de trabalho de 20 milhões de pessoas (1 em cada 65 pessoas) — tanto no cultivo como na manufatura têxtil. Escravos, mão-de-obra barata, mercadores, comerciantes, grandes proprietários, industriais e especuladores participaram na revolução do algodão, matéria-prima que determinou a ascensão dos Estados Unidos como a principal potência económica mundial.

Antes, os locais de transformação da matéria-prima eram muito próximos dos campos de cultivo. Contudo, a era do algodão redesenhou o mundo ao mexer nestes pressupostos. Dos Estados Unidos, Índia, Egito ou Brasil saíam quantidades imensas de algodão com destino à Europa, onde era transformado. Estas transações eram tais, pela dimensão e importância, que estão na base do movimento de globalização e de aproximação das geografias.

No século XIX, o fabrico de fio de algodão e de vestuário eram a maior indústria de sempre, até então conhecida. Como lembra o autor, num artigo publicado na revista 'The Atlantic', só a Inglaterra era proprietária de dois terços dos teares mecânicos que estavam nas suas fábricas, onde trabalhava cerca de um quarto da sua população. Mais de um décimo de todo o capital britânico estava investido nesta atividade e praticamente metade das suas exportações dependiam deste sector. Muitas regiões da Europa e dos Estados Unidos tornaram-se completamente dependentes do fornecimento, barato e pouco flutuante, do algodão.

Como explica Beckert, esta indústria que produziu grandes e ricos industriais, ao mesmo tempo que escravizou milhões de pessoas (tanto nos campos como nas fábricas), foi responsável por catapultar os Estados Unidos para o centro da economia global. No início da segunda metade daquele século, esta 'commodity' era responsável por 61% do valor das exportações norte-americanas.

“Antes do início do 'boom' do algodão, nos anos de 1780, a América do Norte era uma promessa, mas um 'player' marginal, da economia global”. Contudo, apenas algumas décadas depois, a Inglaterra estava agora, perigosamente, dependente do “ouro branco”, expedido a partir de Nova Iorque e responsável por 77% do algodão consumido pelas unidades fabris britânicas.

Contudo, argumenta o autor, sem a escravatura este movimento gigantesco de trocas e de manufatura, que ficaria para a história como a Revolução Industrial, não teria ocorrido. Segundo a recensão crítica do 'The New York Times', “a contribuição mais significativa de Beckert é a forma como mostra que todos os degraus da industrialização do algodão eram baseados na violência”.

Repleto de estatísticas e com uma narrativa atraente, “Empire of Cotton”, diz a sua sinopse, conta como, num período tão surpreendente e breve da História, os empreendedores europeus e os poderosos homens de Estado conseguiram moldar a produção mais importante do mundo, combinando a expansão imperial e o trabalho escravo com novas máquinas e trabalhadores assalariados, um modelo que mudou o mundo.

Esta é a história de como, começando bem antes de 1780 e do advento da produção mecânica, estes homens capturaram rotas de comércio e conhecimento da Ásia e os combinaram com a expropriação de terras nas Américas e com a escravatura de trabalhadores africanos, para redesenharem crucialmente estes diferentes domínio do algodão que existiam há milénios; de como o capitalismo industrial deu origem a um império que mudaria o mundo”.

Este império do algodão foi, desde o início, um elemento vital da constante e global luta entre escravos e latifundiários, homens de negócios e homens de Estado, trabalhadores e proprietários industriais. O autor mostra, de forma clara, como estes peões e forças deram origem a um movimento que ainda hoje se mantém, que enriqueceu alguns e que lançou muitos para as desigualdades sociais que, atualmente, persistem.

Ainda hoje, as indústrias que dependem do algodão, nomeadamente a do vestuário, mantém uma lógica de trabalho barato, tendo transferido os seus centros de produção para a Ásia (o continente que, muito antes do advento da Revolução Industrial, era o centro de produção de algodão). Atualmente, em todo o mundo, trabalham 350 milhões de pessoas no cultivo, transporte, tecelagem, costura e outros processos de transformação desta fibra natural.

“Empire of Cotton: A Global History”, de Sven Beckert, Knopf, 615 páginas, €17,75 (preço na Amazon)

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: JMPereira@exame.impresa.pt

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