Dois anos de pandemia

“Quando testei positivo passaram-me mil e uma coisas pela cabeça. Já tinham morrido passageiros no navio”: Adriano, o primeiro português infetado com covid-19

Foto: Ana Baião
Foto: Ana Baião

Adriano Maranhão é um canalizador da Nazaré que passou as tormentas nos mares do Japão. Há dois anos, foi o primeiro português infetado com covid-19

(O Expresso publica a partir de 2 de março e até dia 16 uma série de trabalhos sobre os dois anos da pandemia.)

Adriano Maranhão passou dias de “grande angústia” a bordo do navio de cruzeiro Diamond Princess, que há precisamente dois anos navegava em alto mar entre a China e o Japão, numa altura em que a Organização Mundial da Saúde ainda não tinha decretado a pandemia, mas em que já havia milhares de infetados e mortes por todo o mundo. “Naquela altura, a covid-19 era ainda um grande ponto de interrogação”, conta o canalizador de 43 anos da Nazaré que fazia parte da equipa de tripulantes onde havia mais portugueses.

O primeiro sinal de alarme a bordo foi dado quando um passageiro que desceu em Hong Kong, no primeiro dia de fevereiro, testou positivo. As autoridades decidiram que o navio ficaria atracado no porto de Yokohama, no Japão: passageiros e tripulação foram obrigados a ficar isolados nos seus camarotes, salvo saídas excecionais ao convés. “Era uma autêntica prisão: ninguém podia entrar ou sair do navio.”

A moral a bordo “ficou de rastos” quando chegou a notícia da morte de dois passageiros japoneses de mais de 80 anos que tinham sido internados num hospital naquele país. “Nessa altura recebíamos informações diárias de novas pessoas infetadas no navio. Foi o caos.” Isto numa altura em que as autoridades japonesas trancavam o navio com receio de que a epidemia que se alastrava no Diamond Princess chegasse a terra. As chefias no navio não tinham qualquer poder sobre esta decisão. “Olhando para trás, acho que nem os médicos japoneses estavam preparados para enfrentar a covid-19. E não souberam fazer o isolamento em condições.”

Só no Diamond Princess infetaram-se 700 das mais de 3700 pessoas a bordo.

Adriano Maranhão recorda-se de um episódio que nunca lhe irá sair da cabeça: um rapaz que estava à sua frente caiu “atordoado” para o chão sem que nada o fizesse prever. Nesse dia teve a certeza: “Este vírus não é coisa boa.” A histeria a bordo ia aumentando: o seu chefe já não pedia para irem arranjar canos estragados no navio e foi o primeiro da sua equipa a anunciar que “queria fugir dali para fora”, o que deixou todo o pessoal “indignado”.

“O meu pai está na televisão”

A 22 de fevereiro de 2020 foi a vez de Adriano Maranhão receber a notícia de que estava infetado com Sars-Cov-2. “Passaram-me mil e uma coisas pela cabeça. Naquela altura já tinham morrido quatro passageiros e as informações que passavam é que o vírus podia matar. Na altura, ninguém anunciava ainda os recuperados.”

O português foi internado no hospital de Okasaki, onde ficou durante nove dias. Tinha alguns dos sintomas clássicos de uma gripe: cansaço fora do normal e dores de cabeça. Chegou a ter 39 graus, mas nada de tosse ou perda de paladar. Daí que nunca tenha sido encarado pelos médicos como uma “prioridade” no hospital. Apesar de tudo, conta que foram dias muito agitados. “Se tivesse acontecido hoje, com tudo o que sabemos sobre a covid-19, não teria sido tão preocupante.”

O canalizador português diz ter mais razões de queixa do corpo diplomático português no Japão do que propriamente da doença. “Tentei falar com o embaixador várias vezes, em vão. Sei que ele ligou para o hospital mas não falou comigo. Só quando cheguei ao hotel é que consegui falar com ele. Mas a embaixada portuguesa deixou algo a desejar em todo este processo, o que me deixa muito indignado”, critica.

Em Portugal, a sua mulher, Emanuelle Maranhão, tentava ajudar o marido à distância, conseguindo a ajuda do presidente da câmara da Nazaré, Walter Chicharro, que alertou o Governo e a Presidência da República. Marcelo Rebelo de Sousa viria a telefonar diretamente para Adriano Maranhão, tornando o seu caso ainda mais mediático, já que era o primeiro português no mundo a ser infetado com o vírus que viria a matar milhões de pessoas.

Adriano Maranhão pedia a Emanuelle para evitar contar o que se passava no Japão às três filhas, de 2, 5 e 9 anos, para não ficarem ainda mais preocupadas. “Vieram a saber tudo pela televisão, o que me deixou triste. Mas pedia-lhes para não ligarem ao que viam na comunicação social.” A reação da filha do meio foi a mais inesperada. “Para ela foi uma festa o pai aparecer na televisão.”

O reencontro com a família na Nazaré, mais de três meses depois de ter embarcado, foi “especial”, numa altura em que a pandemia já era oficial e o país se preparava para entrar em confinamento.

Adriano Maranhão garante que apesar de todas as contrariedades e angústias não ficou traumatizado com o que se passou no Japão. E já voltou a embarcar na mesma companhia como canalizador mais três vezes. “Apesar de as saudades da família serem muitas, trabalhar em alto mar permite-me ganhar muito mais dinheiro do que em terra.” Sempre que embarca, é obrigado a ter as vacinas em dia e a fazer testes à covid-19 mas nunca mais ouviu a palavra ‘positivo’.

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