Passar da faculdade para o hospital, criar um negócio, voltar a casa dos pais, ir para a cidade, ter sucesso no TikTok: cinco histórias de quem entrou na idade adulta durante a pandemia
A entrada na vida adulta é uma fase de transição e, por isso, “um fator de vulnerabilidade, inquietação e incerteza”, explica a psicóloga Margarida Gaspar de Matos. Sílvia, Rui, Ana, João e Catarina fazem parte da geração que iniciou esta nova fase com a pandemia como pano de fundo
(O Expresso publica a partir de 2 de março e até dia 16 uma série de trabalhos sobre os dois anos da pandemia.)
Sílvia tornou-se médica. Rui abriu o próprio negócio. Ana voltou a Portugal e à casa dos pais no Alentejo. João mudou-se para Lisboa e teve de fazer amigos quando a regra era o isolamento. Catarina começou a fazer vídeos no quarto para passar o tempo e agora tem milhões de visualizações no TikTok.
Em comum têm a idade. Com vinte e poucos anos, estes jovens tiveram de navegar durante a pandemia pelos desafios da entrada na vida adulta.
“Erik Erikson [um dos teóricos da Psicologia do desenvolvimento, nascido em 1902 e que morreu em 1994] fala na adolescência como a fase da identidade, em que as pessoas exploram o mundo e arranjam amigos. A fase seguinte é a da intimidade, não só com um parceiro amoroso ou sexual, mas com o próprio e com os projetos de vida”, explica a psicóloga Margarida Gaspar de Matos. “A década dos 20 é a procura de uma vida autónoma e pela resposta às perguntas de ‘quem sou eu’, ‘como me vou desenrascar na vida’, ‘com quem e o que vou gostar de fazer’.”
Para estes jovens, a pandemia foi mais um fator numa equação já de si difícil. “Todos fomos sujeitos a um acontecimento adverso, mas na realidade cada um viveu o acontecimento à sua maneira”, refere a catedrática da Faculdade de Motricidade Humana. Estas são algumas de muitas histórias que podiam ser aqui contadas.
“Quando há o sonho da medicina, nunca estamos à espera que vá acontecer uma destas situações”
A 2 de março de 2020, quando foi diagnosticado o primeiro caso de covid-19 em Portugal, Sílvia Lopes estava a meio do quinto ano do curso de Medicina na Universidade Nova de Lisboa. Com 22 anos, estava a começar o segundo estágio do que deveria ter sido uma sequência de passagens por diferentes especialidades. Uma semana depois estava em casa.
“Fizemos o segundo semestre todo, que supostamente seria extremamente prático, em casa. Tivemos aulas por videochamada, mas tudo muito à base de casos clínicos teóricos. Na Medicina, o facto de não contactarmos com doentes acaba por tornar as coisas mais abstratas”, recorda.
Silvia Lopes, 24 anos (Foto: D.R.)
No ano letivo seguinte, o último do mestrado integrado, teve a “sorte” de não voltar a ser mandada para casa, nem quando a pandemia se agravou ou o confinamento voltou. “Acabou por haver contingências, mas dependia das zonas em que estávamos a fazer os estágios.”
No início de 2021, quando em Portugal se registaram os valores recorde da terceira vaga, Sílvia estava a estagiar num hospital de Lisboa e deu por si muito perto do olho do furacão. “Na primeira semana senti-me mais insegura pela parte emocional e pelo sentido de incerteza. Depois a pessoa acaba por erguer a cabeça e perceber que vai fazer a diferença. Há que deixar as inseguranças de lado, porque eu quero ajudar e há aqui quem precise de cuidados, de uma mão ou de uma palavra.”
Por esta altura, em paralelo com os desafios de se ser estagiária num hospital a braços com uma pandemia, os estudantes de Medicina travavam uma luta nos bastidores. “Foi quase uma luta para se compreender que os alunos de sexto ano faziam exatamente a mesma atividade que os outros profissionais de saúde que já tinham sido vacinados, mas só conseguimos a vacinação em maio de 2021, já quatro a cinco meses depois.”
Sílvia fala do “medo” que sentiu nessa altura em estar sempre protegida e em proteger a família. “Foi extremamente desafiante porque acabamos por ser colocados quase na mesma posição em que os profissionais de saúde tinham sido colocados em março de 2020. Em casa tentei evitar estar ao pé dos meus pais. Tinha receio de não estar a usar os métodos de proteção adequados ou necessários, porque não era assim tão infrequente aparecerem doentes covid no meio das enfermarias mesmo com todos os controlos que eram realizados.”
Apesar de tudo, a pandemia não atenuou a convicção na profissão que escolheu. Em julho teve a sua graduação e, com a Prova Nacional de Acesso à Especialidade feita em dezembro, começou nos primeiros dias de 2022 o primeiro ano do internato. “Quando há o sonho da medicina, mesmo pensando em situações passadas como a gripe espanhola ou a peste negra, nunca estamos à espera que vá acontecer uma destas situações. Fez-me acreditar mais no que quero para o meu futuro e fez-me perceber que dá para fazer a diferença no apoio ao paciente e aos familiares.”
“Não foi tanto um ato de coragem. Para mim foi mesmo uma necessidade de criar a minha própria alternativa de trabalho”
No início de 2020, Rui Castro Prole, agora com 24 anos, estava a começar a “criar a sua própria alternativa”. Primeiro tinha feito os dois primeiros anos do curso de Sistemas e Tecnologias da Nova IMS. Depois trabalhou durante um ano na banca. Por fim, tinha o “típico trabalho de escritório”, “ótimo pelas métricas habituais”, mas em que não se “sentia minimamente satisfeito ou preenchido pelo que fazia”. “Para mim, não foi tanto um ato de coragem como normalmente se descreve o abandonar de um trabalho tradicional para abrir um negócio. Para mim foi mesmo uma necessidade.”
Nascia assim a Stuff Out, uma plataforma de venda de artigos em 2.ª mão. “A ideia inicial sempre foi aliar os conhecimentos tecnológicos que eu e os meus amigos do curso tínhamos a um negócio que fosse local e sustentável”, explica.
“Para mim, não foi tanto um ato de coragem como normalmente se descreve o abandonar de um trabalho tradicional para abrir um negócio. Para mim foi mesmo uma necessidade.”
Rui Castro Prole, 24 anos
O que não estava nos planos era a pandemia, que chegou ao terceiro mês de vida da empresa. “Uma das estratégias iniciais que tínhamos para abrir o negócio seria ter eventos ao ar livre. Foi completamente cancelada. Uma semana antes de ser decretado o estado de emergência abandonamos o pequeno escritório que tínhamos em Lisboa e fomos para minha casa no campo”, recorda.
“Acabamos por fazer um retiro alargado. No início íamos muito com a ideia de que, fechados numa casa, íamos fazer um planeamento enorme e aperfeiçoar o site. Não foi fácil, porque quer psicologicamente, quer porque era uma primeira vez para nós, ser produtivo foi difícil. Mas foram três meses determinantes. Saímos deles com uma estratégia completamente diferente.”
“No início fomos mais generalistas, fizemos de tudo um pouco. Ao fim do primeiro ano, decidimos focar-nos a 100% só em livros em segunda mão. Surpreendentemente e ao contrário do que poderíamos pensar, são um objeto que se adapta muito bem a esta nova realidade. E do ponto de vista logístico, são muito mais fáceis de lidar.”
À loja digital somou-se, em julho de 2021, uma livraria física no Príncipe Real. “Como todos os passos nessa altura, foi um passo de loucura. Montámos o espaço com as nossas próprias as mãos e felizmente tem corrido muito bem.”
Agora, quando a empresa tal com a pandemia contam já dois aniversários, a Stuff Out aponta para novos projetos, como a realização de eventos ou o serviço de café no interior da livraria. “Pelo menos já é possível sonhar.”
“Sabia que as coisas iam ser difíceis, mas foram dez vezes mais difíceis do que estava à espera”, reflete Rui. “Ainda tenho zero segurança de que o negócio exista daqui a um ano. Até porque não sabemos se a pandemia vai aliviar de vez, se a economia vai voltar a fechar, se vamos entrar em crise ou de repente há uma terceira guerra mundial. Vivemos nestes tempos, portanto nunca podemos ter a certeza, mas, até ao dia em que alguém me obrigar a fechar portas, eu não as fecho.”
“Todos os planos que tinha tiveram de ser readaptados, porque não vivemos no mundo em que vivíamos antes”
Em março de 2020, Ana Rosário estava a morar em Londres e a procurar trabalho após ter terminado o mestrado em Jornalismo, Artes e Lifestyle. “Recebi o meu diploma em fevereiro de 2020. Foi um timing fantástico porque em março fechou tudo”, ironiza. “O meu último dia de liberdade foi exatamente o dia do meu 23.º aniversário (13 de março). Fui jantar com umas amigas, mas já tinha compras feitas e tudo preparado para me fechar em casa no dia seguinte.”
Ana Rosário, 24 anos (Foto: D.R.)
Nos meses que se seguiram fez trabalhos para uma agência da faculdade e manteve-se na capital britânica. Em dezembro rumou a Serpa, de onde é natural, para passar o Natal em família. A estadia era para ser temporária e Ana estava otimista. Afinal de contas, a vacinação estava a arrancar. “Na minha cabeça as coisas iam começar a abrir. Estava a olhar para o copo meio cheio. Ainda tinha deixado coisas em Londres porque achei que ia voltar.”
“Nem duas semanas depois, o Reino Unido ativou o Tier 4 (nível de alerta máximo), que fechou mesmo o país. Ninguém entrava nem saía de Londres.” 2020 tornou-se 2021 e as viagens internacionais continuavam restritas. A estadia de um mês prolongou-se. “[Não voltar] foi uma decisão um bocado difícil, mas consciente. Estava a tentar adiar assumir essa decisão, mas já não estava a resultar. O que me custou mais foi sentir que deixei imensos planos em suspenso.”
Voltar à casa dos pais e ao Alentejo “desta forma permanente”, principalmente depois de viver sozinha desde que tinha ido para a faculdade aos 18 anos, nunca tinha estado nos planos. “Já tinha as minhas próprias rotinas e hábitos. Tive de me reabituar a viver numa casa com regras próprias e começar a ajudar, porque já não sou propriamente uma miúda e não me queria sentir um empecilho. Acabou por ser bom, porque a comida da mãe é sempre uma coisa boa e de conforto”, diz com humor.
“Não era o sítio onde eu pensava que ia começar a minha vida adulta. Ao longo do ano, percebi que talvez até fez sentido este regresso a Portugal. Pude acalmar, recarregar energias e reavaliar as minhas prioridades e o que queria e podia fazer.”
“Eu era uma pessoa de planos muito a longo prazo. No secundário, enquanto os meus colegas estavam a descobrir o que queriam fazer, eu já tinha escolhido licenciatura, mestrado e o que queria fazer a seguir. Mas ninguém conta com o impensável. Todos os planos que tinha estavam adaptados a uma realidade normal tiveram de ser readaptados, porque não vivemos no mundo em que vivíamos antes. [Antes da pandemia] estava de tal forma focada numa coisa tão específica que quando os planos se alteraram não estava preparada para me readaptar.”
“2022 é o ano em que está tudo a ir para a frente.” Depois de meses de “tantas negas”, Ana está “super entusiasmada” com o novo emprego numa empresa portuguesa. Por agora está em teletrabalho no Alentejo. “Não sei o que vai acontecer no futuro, se fico cá ou vou. Não quero pensar nisso, só quero pensar no que está a acontecer”
“Vim para Lisboa sem conhecer ninguém. Fazia chamadas para me fazerem companhia quando estava em casa”
Para João Matias, a mudança maior não chegou no início da pandemia. A estudar na Guarda, voltou para casa dos pais na Sertã para fazer o primeiro confinamento com a família, enquanto tinha aulas online.
“Mesmo sem poder sair tinha o meu espaço. Não é nada como em Lisboa, podia estar à vontade e até me fez bem. Criei novos hábitos de vida, pratiquei mais desporto, estudei mais tempo e tive mais contacto com a minha família, que antes só via aos fins de semana”, afirma.
João Matias, 26 anos (Foto: D.R.)
A transição chegou em setembro de 2020. Com apenas algumas cadeiras para fazer no curso de Desporto, decidiu mudar-se para estagiar num clube de futebol. “Senti que na Guarda não ia ter as mesmas oportunidades que tenho aqui em Lisboa.”
“Vim um bocado à descoberta, sem conhecer ninguém. Conheci muita gente a nível desportivo no estágio. O aspecto social é que foi mais complicado. Tinha uma rotina de trabalho-casa-trabalho. Isolei-me muito, estive muito tempo sozinho em casa e sentia-me só. Fazia chamadas para me fazerem companhia”, recorda.
A esta turbulência juntou-se o choque de realidade de viver numa grande cidade. “Eu sempre estive habituado a zonas mais calmas. A certa altura, estava a morar em Arroios porque a minha casa estava em obras. Como estava numa zona comercial senti muito o movimento das pessoas na rua e tive alguns momentos de ansiedade e stress na minha rotina que nunca tinha tido antes. Saía de casa para um passeio higiénico como fazia na Sertã, mas não conseguia estar tão confortável. Lá conseguia ir andar de bicicleta ou correr e não encontrar ninguém na rua. Aqui, assim que dava um passo fora de casa, já estava em contacto com dez ou vinte pessoas.”
As redes sociais foram a sua tábua de salvação. Foi assim que manteve contacto com os amigos e conhecendo pessoas novas. A partir do ecrã do telemóvel nasceram “grandes amizades” e até um relacionamento. Com o alívio das restrições essas relações saltaram para a vida real. Criou uma rede de amigos de amigos e aos poucos começa agora a sentir-se estabilizado na chamada vida adulta.
“Muitas pessoas perderam na pandemia, mas eu posso dizer que ganhei muito”
Recém-licenciada, Catarina Frazão estava à procura de emprego ou de um estágio na área do jornalismo. “Não consegui encontrar nada e durante a pandemia mais difícil ficou. Toda a gente foi para casa, os estagiários deixaram de estagiar.”
Catarina Frazão, 24 anos
Sem forma de ocupar o tempo, a jovem passou, como muitos outros, as primeiras semanas do isolamento a experimentar novos hobbies. “Fui às cozinhas, fui ao piano e depois houve uma altura em que me aborreci disso tudo e decidi experimentar maquilhagem, porque não me sabia maquilhar. Decidi encomendar produtos da net e comecei.”
Por essa altura estava também no TikTok, a rede social que por esses dias conquistava popularidade mundial. “Uma rapariga que eu seguia fez uma trend [um vídeo inspirado na Barbie, que estava a ser adaptado por vários criadores]. Quis experimentar.”
O sucesso foi instantâneo. O primeiro vídeo teve logo dez mil visualizações nas primeiras 24 horas. “Se me perguntar se aquele vídeo foi intencional para ganhar seguidores, vou dizer que foi 50/50. Quando experimentei não foi com o objetivo de chegar a algum lado, mas quando publiquei gostei do resultado e quis ver se as pessoas gostavam também.”
O retorno que teve incentivou-a a continuar. Durante o verão começou a publicar regularmente, embora esteja desde setembro de 2020 a conciliar as várias horas que demora cada conteúdo com o mestrado em Media e Jornalismo. Os vídeos tornaram-se cada vez mais elaborados e com eles a base de seguidores tornou-se cada vez maior. Hoje são mais de 238 mil. O vídeo mais visto já está perto dos 11 milhões de visualizações.
“Acho que quando estou a gravar não estou bem ciente do público que posso alcançar. É inacreditável a quantidade de apoio que recebo nos comentários, mas isto é algo digital. Não é um estádio cheio de pessoas. Estou só ali a gravar no chão do meu quarto e depois não me cai a ficha que vai ser visto por milhares de pessoas”, admite a jovem de 24 anos.
O sucesso que conquistou na plataforma chamou a atenção de algumas marcas. Os vídeos patrocinados que fez permitem-lhe aspirar a um futuro como criadora de conteúdos e na área do entretenimento. “Se me perguntarem se me sinto como uma influencer, a minha resposta é não. Sinto-me uma pessoa que faz macacadas para a internet, mas eu gosto disso. [A pandemia] mudou completamente os meus planos. Não estava nada à espera de seguir uma coisa tão incerta”, considera. “Muitas pessoas perderam na pandemia, mas eu posso dizer que ganhei muito. Isto faz-me muito feliz todos os dias e sou muito grata por as pessoas gostarem do que eu faço e darem-me a oportunidade de fazê-lo”.