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Dois anos de pandemia

As ‘estrelas’ que a pandemia deu a conhecer

FERNANDO VELUDO (EXCLUSIVO PARA EXPRESSO), 23 fevereiro 2022, VILA NOVA GAIA – RAQUEL DUARTE pneumologista
FERNANDO VELUDO (EXCLUSIVO PARA EXPRESSO), 23 fevereiro 2022, VILA NOVA GAIA – RAQUEL DUARTE pneumologista

A 2 de março de 2020, a ministra da Saúde anunciou a confirmação do primeiro caso de covid-19 em Portugal. Desde então, epidemiologistas, virologistas e outros cientistas tornaram-se protagonistas improváveis do espaço mediático. O médico de saúde pública Ricardo Mexia, o virologista Pedro Simas e os investigadores Tiago Correia e Raquel Duarte foram alguns deles

As ‘estrelas’ que a pandemia deu a conhecer

Mara Tribuna

Jornalista

(O Expresso publica a partir de 2 de março e até dia 16 uma série de trabalhos sobre os dois anos da pandemia.)

Nunca tantos peritos falaram com a comunicação social, interpelados por jornalistas numa base quase diária, sobre um vírus novo e desconhecido, quando existiam mais perguntas do que respostas. Entre microfones, diretos, comentários, intervenções e números, muitos números, Pedro Simas, Ricardo Mexia, Raquel Duarte e Tiago Correia tornaram-se quatro caras conhecidas dos portugueses. Intensidade e responsabilidade, alguma fadiga mas muita gratificação são as palavras não técnicas que estes especialistas fazem dos dois anos de pandemia em Portugal. A 2 de março de 2020, a ministra da Saúde anunciou a confirmação do primeiro caso de covid-19 no país.

“Foram dois anos muito desgastantes para qualquer profissional de saú­de, e eu não serei exceção.” Ricardo Mexia foi presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública até janeiro e deixou o cargo após tornar-se presidente da Junta de Freguesia do Lumiar, em Lisboa. Durante o período à frente da associação, sentiu uma “responsabilidade social que não podia enjeitar”. Olhando para trás, uma das maiores dificuldades foi “gerir uma informação em permanente mudança”. “Seguramente, foi difícil lidar com a incerteza”, reflete.

Pedro Simas está familiarizado com este conceito. Diz que foi “100% cientista” e disse “sempre aquilo que pensava”, mas o virologista “descontraído” acredita que nem sempre foi bem interpretado. “Senti-me sozinho na minha voz e frustrado quando os cientistas diziam ‘isto é tudo inesperado’”. Para Simas, não foi assim tão “inesperado”; aliás, “não houve grande surpresa”, explica, porque “este vírus seguiu o curso de outros coronavírus”. Muitas vezes diziam-lhe: “É a única pessoa que está a afirmar isso, explique-se.” Apesar de se sentir “contracorrente”, Simas não tem arrependimentos: “Talvez pudesse ter moderado as minhas expressões, mas não me arrependo de nada. Mas também não quero soar arrogante”, acrescenta.

Raquel Duarte é uma das caras familiares das reuniões do Infarmed, em que periodicamente um grupo de especialistas anuncia ao país em que pé estamos, quais as medidas a tomar e define as recomendações posteriormente trabalhadas pelo Governo. “O princípio da prudência foi sempre a regra. Apesar de nos reunirmos com a maior evidência possível, a verdade é que numa fase inicial ela era muito escassa”, explica. Além do conhecimento disponível, o grupo ia olhando para o que acontecia em Portugal e lá fora e “aprendendo ao longo do tempo”.

O quarto especialista a ganhar projeção mediática é Tiago Correia. Professor de Saúde Internacional e investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa, foi das presenças mais assíduas na comunicação social. Há uns meses, chegou a contar as suas intervenções: passaram as 300, quase uma a cada dia e meio. Para Tiago Correia, a incerteza foi uma das tónicas que atravessou a pandemia, mas “isso nunca foi um problema”. “Quando tive dúvidas, sempre o disse. Transmitir certeza quando ela não existe é que gera angústia”, nota.

Fazer das incertezas certezas

Ricardo Mexia é médico de saúde pública e presidente da Junta de Freguesia do Lumiar. Fotografia: Nuno Botelho

Ora, um dos maiores erros da gestão pandémica foi precisamente a transmissão de falsas certezas. Quem o diz é Rui Gaspar, especialista em comunicação em saúde pública e coordenador da ferramenta de Comunicação de Crise e Perceção de Riscos da DGS. Dá um exemplo concreto: a imunidade de grupo supostamente atingida com a vacinação de 70% da população e, depois, de 85%. “Criou-se a expectativa de que, alcançando esse valor, iríamos voltar à normalidade, e isso não aconteceu.” O resultado foi uma quebra de confiança, acrescenta Rui Gaspar, professor da Católica.

As diferentes opiniões entre os especialistas foram outro aspeto que marcou a comunicação. “Para um cientista essa aparente contradição é normal, mas para o público não é tanto”, explica Rui Gaspar. Nesses casos, a discussão podia ter sido mediada e explicada numa linguagem menos científica e mais entendível pelo público, sugere o também presidente da Sociedade Europeia de Análise de Riscos.

Apesar disso, o balanço das intervenções “é claramente positivo”, classifica Rui Gaspar. Portugal é “um exemplo a nível mundial”, porque poucos países tiveram reuniões como as do Infarmed, com transparência e sustentação em provas científicas. “Não só a vacinação foi um sucesso, este ponto também: termos os especialistas ao serviço da população.”

Reconhecimento público

Tiago Correia, professor de Saúde Internacional, foi das presenças mais assíduas nos media. Fotografia: Nuno Botelho

Ao longo de dois anos, as horas e horas de exposição e visibilidade em rádios televisões, jornais tradicionais e online comportaram naturalmente riscos para estes especialistas, como críticas e ameaças. Uns ligaram mais, outros menos. Raquel Duarte, por exemplo, não tem redes sociais, mas por vezes mostravam-lhe coisas “desagradáveis”. O mesmo se aplica a Pedro Simas. “Quando uma pessoa se expõe ao público, é normal isso acontecer”, reconhece o virologista, que sabia que iria “perder algumas pessoas” com a ligação à Câmara Municipal de Lisboa — foi candidato a vereador na lista do PSD-CDS e agora é assessor na autarquia. Porém, diz, “é o preço a pagar por um projeto com o qual nos identificamos”.O virologista foi igualmente protagonista de um episódio polémico: esteve envolvido na campanha da Zeiss, uma marca de lentes oftálmicas que teve de suspender uma publicidade por “alegações enganosas” e por ser capaz de influenciar de “forma abusiva o consumidor”. Simas declina comentar.

Ricardo Mexia também enveredou pela política. O médico foi candidato da coligação Novos Tempos nas autárquicas, suspendendo o mandato como presidente na associação para concorrer à freguesia do Lumiar. Nega que a visibilidade conseguida no espaço público tenha sido usada para aproveitamento político. “Não me subiu à cabeça esta maior exposição. Não passei a ser político porque apareci na televisão durante dois anos. Já era antes, nada mudou”, vinca.

A maior exposição nos media é circunstancial, reconhece Tiago Correia. Por isso, garante, nunca se “deslumbrou” e diz que “da mesma forma que surgiu vai desaparecer com enorme naturalidade”. “Sou e continuarei a ser professor universitário”, assegura. Uma das coisas que mais preza é nunca ter perdido o foco do que estava a fazer: “Ajudar a perceber temas complexos de saúde além da medicina.” “Senti uma noção de serviço”, resume.

Para Raquel Duarte, isto foi “nem bom nem mau”. Além de ter mais trabalho, não sente grande diferença. “Faço exatamente o mesmo. Vejo os meus doentes, faço a minha consulta, dou as minhas aulas.” Esta pneumologista encarou a tarefa de monitorizar a covid-19 e de propor planos ao Governo como mais uma tarefa que sentiu “obrigação moral de fazer”.

Literacia científica

Pedro Simas, o virologista “descontraído” e da “contracorrente”. Fotografia: Nuno Botelho
Nuno Botelho

Segundo Rui Gaspar, a pandemia ajudou a diminuir a distância entre os cientistas e o público. Um dos aspetos positivos foi a maior literacia em saúde: os cientistas ganharam um palco que não tinham, mas o volume de intervenções foi positivo ou prejudicial?

“Discutir o valor do R(t) era uma coisa de nicho, não um assunto diário do telejornal”, relembra Ricardo Mexia. O argumento da hipermediatização da covid-19 é rejeitado por Tiago Correia. “Este acontecimento é estrutural na nossa História, vamos olhar para isto como se olhava para a gripe espanhola em 1918.” Rui Gaspar concorda com Correia e nega ainda que o recurso aos especialistas tenha sido um problema ou um exagero, porque, “em muitos estudos sobre a confiança das fontes de informação, habitualmente, os cientistas aparecem no topo”.

Portanto, a aposta na comunicação de ciência é “uma lição” para o futuro. Ao longo da pandemia percebemos que “a forma como se comunica faz a diferença”, continua o professor da Católica. E isso teve influência na perceção do risco e na adesão das pessoas às medidas, justifica Raquel Duarte. “A população portuguesa mostrou uma elevada literacia nesse aspeto”, resume.

Apesar dos avanços, a literacia cien­tífica é um dos desafios mais importantes que temos pela frente, e um dos primeiros passos a dar é assumir esta impossibilidade: “Temos de ter literacia suficiente para reconhecer que não sabemos tudo. É uma coisa tão simples mas tão difícil”, conclui Pedro Simas.

Trabalho publicado originalmente na edição do Expresso de 25/02

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