Coronavírus

Covid-19. Costureiras que já coseram centenas de materiais de proteção para hospitais estão com falta de tecido

Só no Hospital Fernando Fonseca já foram entregues mais de mil cógulas e 600 pares de perneiras
Só no Hospital Fernando Fonseca já foram entregues mais de mil cógulas e 600 pares de perneiras
D.R.

Ideia de costurar cógulas e perneiras começou no antigo Amadora Sintra, em Lisboa, pela mão de uma anestesista. Em poucos dias correu hospitais de todo o país e o apoio multiplicou-se. Agora o tecido começa a escassear

Filomena Silva é costureira e nunca tinha ouvido falar em cógulas. “A doutora Ângela ligou-me, mandou-me uma fotografia com um exemplo, mas eu só conseguia perceber que era para tapar a cabeça e o pescoço.” Não havia moldes, não havia indicações. “Tive de improvisar. Fui fazer o que achei, experimentei na cabeça do meu marido, e fomos adaptando.”

Faz agora três semanas que esse telefonema de Ângela Rodrigues, anestesista no Hospital Fernando Fonseca, antigo Amadora Sintra, deu origem a uma corrente que se estendeu por todo o país. Nos hospitais da Covilhã, Castelo Branco, Santa Maria, Cascais, Garcia da Orta, Alentejo e Algarve há mesmo pessoas dedicadas à logística de um projeto sem nome, mas com vários rostos, que consiste em costurar e distribuir pelos profissionais de saúde cógulas e perneiras, materiais de proteção que cobrem a parte de cima e de baixo do corpo.

As cógulas cobrem sobretudo cabeça e pescoço
D.R.

Foi tudo de um só fôlego. “A minha mulher partilhou a ideia num grupo de médicos no Facebook às 11h da manhã e ao meio-dia tinha a caixa de correio cheia de e-mails, a pedir informações sobre como fazer, a pedir moldes.” Foi nessa altura que Tiago Cochicho, marido de Ângela Rodrigues, deu corpo ao projeto. “Criei um e-mail, com informações sobre o tecido necessário e partilhei com algumas pessoas conhecidas”, recorda, num convite que se dirigia a quem soubesse costurar ou estivesse interessado em aprender. “Descobrimos que o TNT [acrónimo de “tecido não tecido”, feito com liga de fibras] era o material indicado e fui falar com uma pessoa conhecida, dona de uma empresa que faz t-shirts”, explica Tiago Cochicho. A empresa, a A. M. Frazão, doou dois rolos de material e deu outro impulso. “Nós estávamos a cortar à mão, que custa um bocado. Com os cortes industriais ficou mais fácil.”

Não foi a única ajuda de grande parte. Juntou-se a “Nomalism”, uma empresa de tecidos que agora ajuda a coordenar a iniciativa a nível nacional, e a transportadora Nabais, que assegura gratuitamente o transporte de tecidos das fábricas ou de particulares até às costureiras, que são já centenas por todo o país, ilhas incluídas. “Ainda agora a Nomalism teve um pedido de 10 rolos de TNT para o Algarve, e a transportadora é de Sintra, mas disponibilizou-se para ir lá levar”, explica Tiago Cochicho, que coordena os pedidos e entregas para o Amadora Sintra.

Foi de lá que, uma semana após a primeira publicação, Ângela Rodrigues mostrou onde já ia a iniciativa:

FB

“Também foi muito importante a aceitação das direções dos hospitais. No Amadora Sintra ficaram gratos e permitiram-nos fazer logo testes de esterilização do material”, conta Tiago. As cógulas, apesar de não serem obrigatórias, “ajudam a proteger” e são “úteis para quem está em contacto permanente com doentes”. Só podem ser usadas uma vez, ao contrário das perneiras, que dão para duas utilizações. Quando Tiago falou com o Expresso, esta quarta-feira, tinham sido entregues no Amadora Sintra cerca de mil cógulas e mais de 600 pares de perneiras. É muito material e esse é agora a dificuldade que a iniciativa enfrenta.

Tiago Cochico explica. “O tecido tem de ser TNT de 70 gramas. No caso das perneiras pode ser inferior, mas nas cógulas não, porque não é totalmente impermeável. Até há um tempo era relativamente fácil encontrar este material, mas agora está mais difícil.” Tiago faz as contas: “Encomendámos 10 rolos para o Amadora Sintra e custou-nos 280 euros cada. Agora pedimos um orçamento a uma empresa no Porto e já vai em 400 e tal. O preço quase duplicou.”

Iniciativa tem contado com a ajuda de costureiras, das profissionais às de fim de semana
D.R.

Além de doações de particulares e empresas, parte do material que recebiam era importado, de fábricas em Espanha. Agora os camiões não estão a passar as fronteiras. “E imagino que eles também precisem do material por lá”, comenta Tiago. Há nesta altura duas alternativas, que os organizadores tentam explorar. João Machado, responsável da “Nomalism”, lançou um crowdfunding para angariar fundos para comprar mais tecido. E Tiago comenta que é possível que haja fábricas a produzir este tipo de tecido “Temos estado à procura. É possível que algumas também já estejam a produzir para o Estado, o que acho bem.”

Filomena Silva, ou Mena, a costureira com quem tudo começou, diz que o projeto “foi assim uma inspiração”, que a orgulha. “Ficamos todas contentes quando vemos as peças chegar aos hospitais.” Explica que a partir dos vídeos e tutoriais disponíveis, o trabalho de costura “não é nada difícil”. “Basta ter as medidas certas.” Reforçando que “há muita gente a trabalhar nisto”, todos voluntários, conta que no seu grupo são 25 costureiras, das profissionais às de fim de semana.

“Já fizemos umas 1.300 cógulas e uns 290 pares de perneiras, 500 e tal peças. Há quem faça 100 peças de cada vez e entregue, quem faça 20, outras fazem 40.” Tudo à distância e agora com uma certa apreensão pela falta de material. Mena acredita que a pandemia de covid-19 pode ser uma forma de “passarmos a usar mais o produto nacional. Com tantas fábricas que temos e gente sem trabalhar, como é que não há tecido?”, pergunta num lamento. Por enquanto ainda não falta trabalho, mas já sobram dúvidas. “Eu sou fã de filmes de ficção científica, só não estava à espera deste. Talvez nos abra os olhos.”

Para se juntar ao projeto, siga este link e contacte os responsáveis em cada hospital. A “Nomalism” pode ajudar a chegar a outros, além de ser a plataforma indicada para quem queira doar TNT ou saiba onde o encontrar. Para contribuir para o crowdfunding, o link é este.

Nota: Por lapso, foi escrito que a iniciativa partiu de uma internista. Na verdade, Ângela Rodrigues é anestesista. À visada, o autor endereça o seu pedido de desculpas.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: jdcorreia@expresso.impresa.pt

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