Isabel II é mulher de tradições e gosta pouco de quebrar o ritmo cerimonial que caracteriza a monarquia britânica. Só quatro vezes a mulher a quem os portugueses chamam “rainha de Inglaterra” — é-o do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e de outros 15 estados da Commonwealth, incluindo Canadá, Nova Zelândia ou Austrália — se dirigiu aos súbditos pela televisão, fora de ocasiões habituais como o discurso de Natal. O quinto desses discursos, em 68 anos de reinado, acontece este domingo pelas 20h.
A rainha (que faz 94 anos no dia 21 e, por isso, faz parte da população para quem a covid-19 é mais perigosa) elogiará a “autodisciplina” e “determinação” do país no combate à pandemia, segundo partes do discurso reveladas à imprensa britânica. “Falo-vos naquele que sei ser um tempo cada vez mais difícil. Um tempo de perturbação da vida no nosso país: perturbação que trouxe desgosto a alguns, dificuldades financeiras a muitos e enormes mudanças às vidas quotidianas de todos nós”, dirá.
O tom recorda os tempos da II Guerra Mundial, quando o seu pai, Jorge VI, decidiu ficar em Londres, rejeitando conselhos para se exilar durante os bombardeamentos alemães. A rainha-mãe, Isabel Bowes-Lyon, fez questão de se manter perto dele, tal como as duas filhas.
A progenitora de Isabel II afirmou, depois de o palácio de Buckingham ter sido bombardeado, que só isso lhe dava o direito de “olhar nos olhos o East End”, referindo-se a uma zona pobre da cidade. A experiência foi determinante para Isabel e a sua irmã Margarida, então adolescentes. A agora rainha chegou a falar na rádio, a pedido do primeiro-ministro Winston Churchill.
Data da mesma época o célebre “discurso do rei” para levantar o moral da nação (retratado sem rigor histórico num filme oscarizado). Na noite da vitória aliada contra os nazis, há 75 anos, as duas princesas saíram do palácio e misturaram-se com a multidão que festejava.
“Desde a II Guerra Mundial que o povo britânico e da Commonwealth não sofria tanta incerteza e perturbação. Quando a rainha fala, a sua posição e autoridade é tal que as suas palavras dão a volta ao mundo e são ouvidas até por pessoas que não lhe devem qualquer lealdade, sendo tomadas como conforto e expressão de solidariedade nestes tempos altamente inquietantes”, escreveu o cronista Simon Heffer no jornal “The Daily Telegraph”.
Orgulho nas virtudes de um povo
Esta Páscoa, Isabel II antecipou a deslocação anual para Windsor, onde tem estado confinada. Não terá visitas de familiares nem existe data para o regresso a Londres. O seu marido, Filipe, de 98 anos, foi transportado de helicóptero para junto da rainha.
Desde que abandonou a vida pública, há dois anos, o duque de Edimburgo vive quase permanentemente em Sandringham, a norte da capital. Este domingo ouvir-se-á, pois, e ao longo de quatro minutos, a voz daquela que, além de rainha, é uma senhora de idade com um marido de saúde frágil, quatro filhos, oito netos e oito bisnetos.
Isabel II, recordista no trono britânico (onde se senta desde 1952), só falou ao país para lá dos discursos da praxe quando reinava há 39 anos. Foi em 1991, devido à guerra do Golfo, e durou apenas 45 segundos. Seguiram-se intervenções em 1997, na véspera do funeral da princesa Diana — com relutância e por grande insistência do então primeiro-ministro Tony Blair, inspiração para o premiado filme “A rainha”, com Helen Mirren —, em 2002 quando a rainha-mãe morreu aos 102 anos, e em 2012 quando cumpriu 60 anos de reinado.
Aguarda-se que Isabel II agradeça aos profissionais de saúde e cuidadores e a todos os cidadãos que obedecem às recomendações de distanciamento social. “Espero que em anos futuros toda a gente possa orgulhar-se da sua reação a este desafio. E os que virão depois dirão que os britânicos desta geração foram tão fortes como quaisquer outros. E que as virtudes da autodisciplina, da determinação calma e bem-humorada e do sentimento pelo próximo ainda caracterizam este país”, dirá a soberana, a quem se aplicam os mesmíssimos atributos.
A mensagem foi gravada sob fortes medidas de segurança. Os médicos da rainha aconselharam-se sobre formas de reduzir os riscos para ela e os técnicos. Foi escolhida a Sala Branca do castelo, por ser ampla, e apenas um operador de câmara da BBC pôde entrar, envergando equipamento de proteção individual, revela “The Guardian”. Os demais profissionais estavam noutra divisão.
Discurso combinado com Boris Johnson
Embora “profundamente pessoal”, a intervenção régia foi articulada com Boris Johnson. “O primeiro-ministro e Sua Majestade, a rainha, têm falado regularmente. O n.º 10 [de Downing Street, residência oficial do chefe do Governo] e o palácio de Buckingham têm comunicado sobre o discurso de Sua Majestade. A rainha é a melhor juíza do melhor momento para falar ao país e concordamos em absoluto que este é o momento certo”, disse um porta-voz de Johnson.
“Pedimos ao país que fala grandes sacrifícios e a vida é, de momento, muito difícil para mesmo muita gente”, explica a fonte do Executivo, para quem uma mensagem real “é uma forma importante de ajudar a animar o espírito da nação”, como que “uma luz que brilha nestes tempos escuros”. Ouvir e ver a imagem da chefe de Estado, que tem estado recluída, mostrará também que não deixou de preocupar-se com a sorte dos seus 129 milhões de súbditos. Sexta-feira, de resto, manteve a reunião do Conselho Privado, a primeira por videoconferência.
A ideia é também que Isabel II convença os britânicos a não afrouxarem o distanciamento. “Estamos nisto há duas semanas. O tempo está bom. Precisamos que as pessoas continuem a cumprir. Quando se ignora as diretrizes, o risco de se infetar alguém e de isso acabar por custar vidas é significativo.”
Após uma abordagem que visava fomentar a imunidade de grupo permitindo a contaminação de grandes partes da população, protegendo os mais vulneráveis, Johnson mudou de agulha e recomendou estritas regras de autoisolamento.
Príncipe herdeiro teve covid-19
Também o filho e presumível sucessor de Isabel, o príncipe de Gales, discursou recentemente ao inaugurar, por vídeo gravado em iPad na Escócia, um hospital de campanha em Londres. Carlos, que contraiu covid-19 aos 71 anos e estará curado, elogiou o “trabalho espetacular e quase inacreditável” que foi construir esse hospital num centro de congressos, em nove dias.
O Reino Unido contava, até sábado, 41.903 infetados e 4313 mortos pela pandemia, o mais novo dos quais com cinco anos. As recuperações eram 135, havendo 1559 pessoas em estado crítico. Entre as afetados estiveram Boris Johnson, o ministro da Saúde Matt Hancock e vários deputados. A noiva do primeiro-ministro, Carrie Symonds, que está grávida, afirmou ter tido sintomas e estar “em recuperação”, mas não referiu se foi testada.