Covid-19. “Stay at home, this is my home🙁”: uma criança mostra a sua casa (“Um Desastre Humanitário”, capítulo XII)
Uma criança mostra a casa onde tem de se isolar durante esta pandemia
MORIA CORONA AWARENESS TEAM
O Expresso tem publicado um conjunto de artigos sobre aquilo a que os Médicos Sem Fronteiras chamaram “um novo desastre humanitário”: a Turquia, país com quase quatro milhões de refugiados, abriu as suas fronteiras e muitos desses refugiados começaram a passar - sobretudo rumo à Grécia, onde o Governo local chamou “invasão” ao que está a acontecer. Este é o capítulo XII, em plena pandemia da covid-19: Annie Chapman e Sanne Van Der Kooij são duas médicas que formaram o SOS Moria para unir os médicos de todo o mundo num pedido único - retirem estas pessoas dos campos de refugiados porque quando o vírus chegar “vai ser como uma bomba química, não vai matar, vai dizimar”
Os cartazes estão espalhados por todo o campo de refugiados de Moria (em Lesbos, na Grécia), onde não há casas, nem sempre há contentores, mas há várias tendas onde por vezes vivem mais de dez pessoas. Informação em várias línguas, cartazes com letras bem espaçadas e um horário rígido de turnos - são estas as principais armas da equipa de migrantes anda a patrulhar o campo para alertar quem ali sobrevive para os perigos da covid-19.
Raed Alubaid, de 47 anos, é um dos membros desta equipa que, na página de Facebook, se apresenta como “Moria Corona Awareness Team”, o que, trazendo os seus objetivos à realidade, bem podia ser traduzido para “grupo de pessoas que tenta explicar este novo perigo a quem poucas armas tem contra ele”. Alubaid leva bastante a sério a sua autoimposta missão. Esteve a noite toda acordado porque os confrontos estão a ficar mais sérios no campo. “Estamos confinados por razões políticas e agora também estamos ainda mais isolados por causa deste vírus. Chega menos ajuda, as pessoas têm medo de ficar doentes, de não poderem sair, de não terem comida. Fiquei dia e noite ao alto, de vigia, desculpe a minha voz, miss. Temos de manter os olhos nas nossas coisas, nos nossos, entende o que digo, miss?”
Raed Alubaid, um dos membros da equipa de migrantes que estão a tentar prevenir o aparecimento do coronavírus no campo de Moria, em Lesbos, na Grécia. Ao seu lado está uma das crianças do campo. Ativistas exigem que os mais vulneráveis sejam retirados
MORIA CORONA AWARENESS TEAM
Até 2010 Alubaid foi inspetor de segurança sanitária numa companhia de petróleo iraniana. Tem cursos de primeiros socorros e era bombeiro voluntário em Deir Ezzor, a maior cidade do leste da Síria, de onde fugiu em 2014. Chegou em fevereiro de 2019 a Moria depois de mais ou menos quatro anos na Turquia. “Passado uma semana encontrei a minha filha aqui, com o marido, sem querer, não sabia onde ela estava, só sabia que tinha saído da Síria e só por isso já valeu a pena vir. Ela deve ter o seu bebé dentro de dias e estou muito preocupado porque não há forma de a levar ao hospital e, mesmo que consiga ir lá, ela corre ainda mais risco de ser contaminada porque é onde estão a ser tratados os doentes com coronavírus”, conta.
Fala inglês muito bem e cabe-lhe, por um lado, explicar aos médicos que ainda ali estão os medos e dúvidas da população do campo e, por outro, ir buscar as respostas e espalhá-las por todos. “Andamos o dia todo pelo campo, pedimos às pessoas que fiquem nas tendas, pedimos que lavem as mãos, damos sacos para o lixo, limpamos o campo, damos sabão que as organizações não-governamentais muitas vezes não conseguem fazer chegar a todos, explicamos que quem tem doenças está mais em risco, essas coisas”, diz Alubaid numa das mensagens de áudio enviadas ao Expresso ao longo desta semana.
À porta da entrada do campo de Moria, explica, estão vários cartazes em várias línguas (farsi, inglês, somali, árabe, dari, francês) e cada um dos membros da equipa anda com um crachá com uma determinada cor para indicar às pessoas que línguas consegue falar. As medidas de contenção do vírustambém chegaram a Moria, apesar de estarem longe de ser suficientes. “Por exemplo, agora que as pessoas não podem sair tantas vezes para se irem abastecer de comida, nós recolhemos listas e vamos buscar as coisas às pessoas. Uma pessoa, duas, três, a polícia permite, até vai connosco, mas já não podem ir famílias inteiras passear como antes.” O grupo montou também uma estação de limpeza das mãos à porta do campo e tem voluntários a manter as distâncias nas filas da casa de banho, da comida, do mercado local. “Até fizemos até uma demonstração sobre como lavar as mãos cientificamente”, diz o voluntário.
Até agora não há notícias de qualquer caso do novo coranavírus no campo de Lesbos (a ilha registou a primeira morte, uma mulher grega de 76 anos, na segunda-feira) nem em outros espalhados pelas ilhas gregas (Kos, Samos, Chios, Leros), mas como a sua propagação num sítio destes nunca resultaria em menos de tragédia, há que caminhar sempre à frente do vírus.
Sanne Van Der Kooij, médica holandesa, voltou há pouco de Lesbos e tem uma frase que resume bem o campo de Moria: “Fantástico habitat para um vírus, absolutamente terrível para seres humanos”. Neste momento está a tentar recolher o máximo de assinaturas possível para o projeto SOS Moria, uma forma de tentar pressionar a União Europeia a trazer para o continente as pessoas que ali estão. “Temos cerca de 10 mil assinaturas, quatro mil são holandeses mas queremos encontrar médicos porta-vozes em todos os países para serem os rostos desta campanha, incluindo em Portugal.” Como médica “prometi não fazer o mal, prometi salvar vidas mas vivo numa Europa que não deixa os médicos cumprirem o seu juramento, os políticos estão a tornar impossível a ajuda que podíamos prestar”, diz ao Expresso pelo telefone.
Não tem dúvidas de que o vírus vai chegar a Moria e que se vai espalhar a uma velocidade impossível de conter. “A comida não chega para dar às pessoas os nutrientes todos para combater um vírus destes e há uma torneira de água para três mil pessoas, mais ou menos. Essa torneira por vezes nem sequer deita água. É dramático. Não sei quantos médicos há no campo, talvez uns seis agora”, desabafa.
Sanne Van Der Kooij voltou a 22 de fevereiro e nos últimos meses que esteve a ajudar no campo de Moria dedicou-se principalmente a assistir mulheres grávidas no hospital da capital da ilha, Mitilene. “Os refugiados, se vierem a desenvolver problemas respiratórios, não vão conseguir aceder aos hospitais - já para assistir as grávidas as enfermeiras gregas revezavam-se em turnos enormes. Não há acompanhamento, não ensinam a amamentar, não dão conselhos, não podem, estão cheios de trabalho sempre, constantemente”, conta. “Vi muita gente desesperada, sentada apenas à porta das tendas, cansada de esperar por uma mudança. Há quem tenha chegado a Moria sem grandes traumas de guerra, mas estão agora bastante traumatizados, é possível observar isso nas consultas. Se a isto ainda juntarmos uma vaga de mortes, não sei bem como as pessoas vão reagir.”
Anna Chapman também regressou há pouco: sendo londrina, está ainda a lutar dentro do seu próprio país numa “guerra que muda de direção todos os dias”. Considera impossível que o coronavírus não chegue aos campos de refugiados gregos: “Sei de pelo menos uma mulher infetada que recentemente regressou ao campo depois de ter um bebé. É quase impossível acreditar que eles vão escapar imunes e, quando chegar aos campos, vai ser como uma bomba química: não vai matar, vai dizimar. Podem morrer milhares”, diz a médica, que também faz parte do SOS Moria. Passou o mês de janeiro no campo e os tradutores só faziam perguntas sobre o coronavírus. “Na altura tentei acalmá-los, disse que não era assim tão grave porque na verdade nós na Europa ainda não estávamos de todo envolvidos nessa luta mas vi-os tão insistentes que às tantas perguntei: ‘Ok, vamos lá falar disto, estão tão preocupados porquê?’. E eles disseram simplesmente que se a doença lá chegasse, fosse uma gripe ou não, eles morreriam. Eles sabem bem o que se passa”.
A violência está a atingir níveis preocupantes. Esta semana foi a pior desde o início do surto. Chapman considera que o medo do vírus está por detrás dos problemas: “A infraestrutura está a cair aos pedaços, dizemos-lhes para lavarem as mãos e comerem o melhor possível e eles veem que não dá para seguir as recomendações que leem, que ouvem”.
O sistema imunitário dos migrantes “está completamente comprometido porque muitos passaram meses em viagem por terra, nunca parando para pedir auxílio médico porque têm medo de ficar retidos pelas autoridades, comendo pouco, e os que vieram por mar muitas vezes atiram as suas malas ao mar para o barco ficar mais leve e perdem os medicamentos para as doenças previamente adquiridas”. “Perguntamos quais são essas doenças e eles não sabem dizer”, conta a médica, que se sente “enjoada” quando ouve os políticos europeus a dizer às suas populações que “ficar em casa salva vidas”. Então e aquelas vidas? “É como se fossem menos sagradas que as nossas porque a coisa mais importante a fazer, ficar em isolamento, a melhor forma de combater isto eles não lhe têm acesso.”
Com 47 anos apenas, Raed Alubaiddiz está “à espera do dia em que vai morrer”. Não vai desistir de recomeçar a vida até porque “todos os refugiados são médicos de guerra - até um miúdo com 10 ou 12 anos sabe onde pressionar para estancar o sangue, imobilizar alguém com ossos deslocados”. A gravidade da situação não lhe escapa, “o vírus rodeia-nos como um exército inimigo e eu sei o que é isso é”. Mas desta vez “nós é que temos de fazer um cerco a nós próprios - é só uma outra guerra”.