Antigo ministro e diretor da School of Transational Governance European University Institute, sobre como o mundo poderá ficar depois desta crise
Periodicamente, a humanidade enfrentou crises profundas, criadas por si ou trazidas pela natureza: guerras, desastres económicos, pandemias. De cada vez que sucede perguntamo-nos se não aprendemos com o passado. E depois de as ultrapassarmos ficam cicatrizes profundas na nossa sociedade. Como respondemos a essas crises determinou, com frequência, mudanças significativas na nossa organização económica, política e social. Os romances e filmes pós-apocalipticos (de Planeta dos Macacos a Mad Max ou o Ciclo) não se focam no apocalipse mas sim na sociedade distópica que nasce a partir desse apocalipse e numa memória utópica da sociedade que o precedeu.
Não sabemos ainda qual será a extensão total do impacto do COVID19 na saúde pública, nem se a crise económica que irá gerar será prolongada. Mas é possível (não certo) que a forma como esse combate ocorra venha a ter um impacto duradouro na nossa democracia e forma de vida.
A democracia enfrenta hoje os mais baixos níveis de satisfação em décadas. Uma das razões para essa insatisfação é a percepção de que é incapaz de resolver alguns dos principais problemas que enfrentamos. Se as democracias se revelarem menos eficazes que os regimes autoritários a afrontar o vírus essa percepção sairá reforçada. A democracia liberal, com forte pluralismo político e mecanismos de separação de poderes (precisamente porque surgiu do receio com os abusos do poder) parece, em momentos de crise, limitada na capacidade e rapidez de resposta que pode oferecer. Em tempos de crise, o apelo de um poder forte aumenta. Precisamente aquilo que os populistas têm defendido. A eficácia que regimes autoritários como a China parecem demonstrar no combate à propagação do vírus reforçará essa atração.
Para combater este risco, a democracia tem de contrapor a essa autoridade, a autoridade democrática. Não pode ter receio de a exercer mas deve suportá-la na transparência em vez da opacidade dos regimes autoritários. Na verdade a democracia não deve ter receio de exercer a autoridade precisamente porque ela é democraticamente controlada e legitimada. Isto significa, em primeiro lugar, uma autoridade assente na transparência em vez da opacidade. Esta é uma diferença fundamental na gestão de uma crise num regime democrático. Ela tem de ser feita sem medo da verdade. Chernobil, a série da HBO sobre o desastre nuclear, é uma reflexão sobre a importância da verdade. Mesmo que não a queiramos conhecer ou a procurem esconder, a verdade está sempre lá. “Não se importa com o que queremos. Não se importa com os nossos governos, ideologias, religiões. Ela ficará à espera para sempre”. As últimas palavras do cientista principal da série são para reconhecer que enquanto antes se preocupava com o custo da verdade, passou a preocupar-se com o custo das mentiras. A democracia tem sempre de preocupar-se mais com custo da mentira do que com o custo da verdade. Neste aspecto, o discurso contraditório e a falta de transparência quanto a alguns dados são preocupantes na gestão atual da crise. São raros os Estados europeus que indicam o número de testes já efectuados e quais os critérios usados. Perante isso os números dos diagnosticados perdem qualquer credibilidade (pois não sabemos se são mero resultado de um menor número de testes) e dificultam a avaliação comparada das diferentes respostas publicas. O segundo aspecto que uma democracia tem de salvaguardar no exercício da autoridade é a necessidade de justificar esse exercício. No contexto de uma crise de saúde pública isto faz-se, sobretudo, através do recurso à ciência e ao conhecimento. Esta crise começou aliás por revalorizar as elites técnicas tão atacadas pelos populistas e tão diminuídas pelo acesso generalizado à informação que a sociedade digital trouxe e as novas formas de participação política direta. Parafraseando um personagem de outro filme apocalíptico (12 Macacos), se os vírus fazem bem ou mal pode ser decidido pela maioria... Num mundo onde a informação é confundida com conhecimento as pessoas julgam-se capazes de avaliar tudo aquilo sobre que se informam. A natureza desta crise começa por contrariar isto e exaltar o papel das elites técnicas. Mas na democracia de hoje estas também têm de se justificar perante o público. Isso não significa terem certezas de tudo. Pode até ser o contrário. No outro dia, ouvi um especialista que tinha grandes convicções sobre o vírus e a forma de combater a sua propagação e outro que tinha sobretudo dúvidas. O segundo inspirou-me mais confiança, precisamente pela consciência que demonstrava da necessidade de gerir o risco decorrente da incerteza. Esta crise será um momento decisivo para o combate que hoje ocorre sobre o papel das elites técnicas na democracia: pode restabelecer a sua importância, como pode também vir a ter o efeito contrário. Depende da confiança que suscitarem e do sucesso que demonstrarem.
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