A cabeça de xara é saborosa, trabalhosa e estrela no Alentejo
Não há registos precisos quanto à origem, mas os alentejanos adotaram a cabeça de xara como sua. E Otávia Rebelo, mentora da Salsicharia Canense, levou-a às bocas do mundo graças ao sabor e à paixão que nela coloca. “Da Terra à Mesa” é um projeto Boa Cama Boa Mesa que dá a conhecer os produtos portugueses a partir de histórias inspiradoras e de sucesso, desde a produção até ao consumidor, em casa ou no restaurante
A cabeça de xara está para a Dona Otávia, como é carinhosamente tratada, mentora da Salsicharia Canense, na freguesia de Cano, Sousel, Portalegre, como a obra está para o seu criador. Aprendeu a receita com uma senhora que faleceu recentemente, com 100 anos, e segue-a à risca até hoje para fazer este patê com as partes moles da cabeça do porco, requisitado até em restaurantes de alta cozinha.
A história escreve-se há 26 anos, altura em que construiu, de raiz, a salsicharia onde, ainda hoje, passa os dias. Na verdade, começou a escrever-se antes. “Eu já fazia isto desde os 17 anos. Era uma tradição da povoação. Matava-se um porquinho para comer e eu gostava dessa lide, dessa vida muito mexida”, conta Otávia, hoje com 75 anos.
Salsicharia Canense
O porco alentejano do montado é o protagonista em todas as preparações, da cabeça de xara à farinheira de castanha e ao painho, “feito com o intestino grosso”, alho, sal e bagos de pimenta. De outubro a março, no tempo frio, fazem com mais abundância os lombos, a paia de toucinho e a paiola. “Só trabalhamos com lenha de azinho e o frio faz falta para a carne. Quando chega o calor, não fazemos esses enchidos à chaminé porque pinga muita gordura”, explica Otávia Rebelo, que conta com a ajuda da família na gestão do negócio, promovendo o emprego, o crescimento e a igualdade de género nas zonas rurais, de acordo com as medidas da PAC para o período compreendido entre 2023-2027.
Salsicharia Canense
Primeiro estranha-se, depois entranha-se
Como não sabia fazer a cacholeira branca de Portalegre, um enchido cilíndrico obtido a partir das miudezas do porco, Otávia decidiu apostar na cabeça de xara, preparação que faz seguindo à risca a receita de quem a transmitiu. “No princípio, pouca gente conhecia. Uns não queriam comer porque não sabiam o que era, outros porque não gostavam das ervas” mas, com o tempo, “começaram a pegar no gosto”.
Feita com as partes todas da cabeça do porco, menos a língua e os miolos, “não aparece aí como o chouriço e a farinheira porque dá muito trabalho”. “Isto tem muita mão-de-obra”, revela. “À terça-feira recebemos a carne. A cabeça de porco tem que ser rachada ao meio, estar de molho sem uma pinga de sangue e ser raspada com uma lâmina como os homens fazem a barba. Depois pomos a cozer só com ervas aromáticas – vamos buscar duas à serra, que só se dão na primavera – durante três horas e meia. No dia seguinte desossamos, cortamos miudinho, pomos nas formas, com peso em cima, e ficam 24 horas a escorrer a gelatina e a gordura. Desenformam-se, colocam-se no frio e só no dia seguinte é que se podem partir para a carne ficar compacta”, elabora.
Salsicharia Canense
Mas, afinal, de onde vem esta tradição? “Contam as pessoas mais antigas que uma pessoa daqui da terra tinha ido para França trabalhar para casa de uns senhores com possibilidades e que assistiu a uma matança para ver se seria igual à que faziam aqui no Alentejo”, atira. “Não sabia falar francês mas ouviu falar em algo que lhe soou a cabeça de xara”. Quando voltou a Portugal, de férias, reproduziu a receita da patroa e a aceitação foi boa. Segundo a Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural, “a origem da Cabeça de Xara é objeto de divergências. Para uns autores terá origem na francesa tête d'achard. Para outros terá origem árabe. Sabe-se, contudo, que uma das mais antigas receitas registadas remonta a 1788, estando patente no livro Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha, de Lucas Rigaud, «... hum dos chefes de cozinha de suas Majestades Fidelíssimas D. Maria I e D. Pedro III»”.
Salsicharia Canense
Atualmente, fornece restaurantes de cozinha contemporânea e admite que “já vêm de uma ponta à outra do país” à procura da cabeça de xara, produto que só se fazia em casas abonadas. “É uma coisa que se come como entrada, e a cabeça já dá para fazer uma feijoada, um cozido”. Com capital próprio, construiu um negócio do qual muito se orgulha, mas a idade já pesa. “Só tenho a terceira classe. Aos oito anos tiraram-me da escola para ir trabalhar. O fumeiro dá muito trabalho. Não temos máquinas, é tudo feito à mão.” No entanto, a paixão que coloca no que faz permite que continue a produzir emblemas de charcutaria nacional.
A sustentabilidade social, ambiental e económica na agricultura e nas zonas rurais são linhas orientadoras da PAC - Política Agrícola Comum que, em Portugal, tem como objetivos principais valorizar a pequena e média agricultura, apostar na sustentabilidade do desenvolvimento rural, promover o investimento e o rejuvenescimento no setor agrícola a a transição climática no período 2023-2027.
“Da Terra à Mesa” é um projeto Boa Cama Boa Mesa que dá a conhecer os produtos portugueses a partir de histórias inspiradoras e de sucesso, desde a produção até ao consumidor, em casa ou no restaurante.