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Idanha-a-Velha: a lenda do rei Wamba e as ruas que contam histórias

Idannha-a-Velha
Idannha-a-Velha
Aldeias Históricas de Portugal

Caminhar pelas ruas é viajar no tempo com a ajuda dos habitantes que preservam as mais importantes tradições locais.

Reza a lenda que, no lugar hoje conhecido como a Aldeia Histórica de Idanha-a-Velha, em tempos existiu um humilde lavrador chamado Wamba que se tornou rei dos Visigodos. Ancorada numa paisagem de montado e olival, naquele tempo e até hoje, o sustento dos homens andou sempre de mão dada com a terra. Este é o mote para mais uma iniciativa do Ciclo “12 em Rede - Aldeias em Festa”, que decorre este sábado, dia 30 de outubro, que recebe o nome de “Nas Terras do Rei Wamba... Há Pão!”. Aproveite esta iniciativa e faça workshops de pão ou “borrachões”, uns biscoitos típicos da aldeia, visite a mostra de produtos endógenos, e oiça “Estórias de Pão” entre outras atividades. E aproveite para passear e sentir o que esta aldeia histórica tem para contar.

Foto: Aldeias Históricas

História ancestral e a leveza da música

Há melodia no ar e o passo abranda... Ao lado do anfitrião desta visita à aldeia histórica de Idanha-a-Velha, o técnico de turismo João Robalo, entramos na igreja de Santa Maria (Sé) para ouvir os instrumentistas do Concerto Ibérico Orquestra Barroca, da MAAC – Música Antiga Associação Cultural. Ensaiavam “para um concerto” dedicado à obra “Messias”, de Handel, informou João Janeiro, presidente da MAAC e diretor da orquestra. Por vezes, esta igreja acolhe residências artísticas, ensaios e workshops. O edifício conserva bonitos frescos e foi objeto de alterações ao longo dos séculos, sendo “um dos mais admiráveis monumentos do pré-românico português”.

Ao lado da Sé estão as ruínas do antigo paço episcopal onde se sente o peso da história. Esta aldeia de Idanha-a-Nova ergue-se onde existiu uma cidade romana, nos finais do século I a.C., a Civitas Igaeditanorum, tendo depois sido sede episcopal sob domínio suevo e visigótico, povos que antecederam a ocupação muçulmana, a reconquista cristã e a doação aos templários. O notável conjunto de ruínas atrai curiosos e arqueólogos. Observam-se urnas recuperadas, dois batistérios, um deles o mais antigo da Península Ibérica e cuja construção data da segunda metade do século IV.

Idanha-a-Velha

É um dos sinais mais recuados e importantes da presença do cristianismo do atual território português”, explica Patrícia Dias, do Gabinete de Arqueologia, Conservação e Restauro da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova. Entre os vestígios estão inúmeras epígrafes encontradas na aldeia. Recomenda-se uma visita ao arquivo epigráfico para conhecer estes tesouros com dizeres gravados, como o do escravo Flávio Áristonum, que ao ser “liberto dos igeditanos” dedicou uma ara ao deus Marte.

Perto do arquivo epigráfico está a nova sede do posto de turismo, junto à entrada para o lagar de Varas. João Robalo, um lisboeta que em 1996 se mudou para a aldeia, terra natal do seu pai, chama a atenção para os fotogénicos ninhos de cegonhas que “todos os anos” se veem nalguns edifícios da aldeia. Num instante chega-se ao largo da Igreja, onde estão o pelourinho manuelino, a antiga casa da câmara e a igreja matriz. Um dos rostos da aldeia, Zé Bernardo, senta-se à porta de casa a vender frascos de “O piripíri do Zé”, caseiro e “superforte, mas bom e sem produtos químicos”, garante, a quem passa. A produção de malaguetas é “um entretém, mas dá muito trabalhinho”, conclui o ancião. Procure também pela casa e loja Mário Idanhense, onde o proprietário vende mel, queijos e borrachões da região.

Idanha-a-Velha

O forno comunitário

Mesmo a meio dos afazeres do almoço, um bacalhau com batatas e cebolinha, a tia Albertina arranja tempo para dois dedos de conversa. Sempre viveu na aldeia e explica que o barril que tem na parede era levado pelo marido para o pastoreio. Como é de barro, “a água ficava sempre fresca”. Albertina gosta de tratar das flores da sua rua. Na primavera começam a florir, colorindo a aldeia. E era uma das pessoas que participava numa das tradições mais especiais, a cozedura do pão no forno comunitário. As mulheres mais antigas juntavam-se e “havia uma entreajuda muito grande”. Hoje em dia, apenas a dona Beatriz acende o forno com a esteva e põe a cozer o tradicional pão casqueiro em Idanha-a-Velha. É feito “à base de trigo e sem fermento, só com a massa-mãe”, explica a dona Beatriz, que descreve como tudo acontecia: “Vinham quatro ou cinco pessoas de cada vez e havia um forneiro que ia à lenha, acendia o forno e dava a vez às pessoas para amassarem”. João Robalo sente saudades do cheiro a lenha e do pão no forno. “Era também uma tradição, na altura dos Santos e da Páscoa, vir cá às madrinhas que estavam a cozer pão, para nos darem o folar”, comenta.

O forno comunitário foi uma oferenda ao povo da parte da família Marrocos, que eram os morgados do rei e os principais proprietários rurais da localidade. A Casa Grande, solar dessa família, evidencia-se à chegada. Todavia, de momento saímos para fazer o percurso pela cintura da aldeia. Começa-se junto à porta Norte, para apreciar a monumentalidade da muralha e das torres. Dá para subir e seguir por um passadiço em ferro, observando as oliveiras e parando nos miradouros semicirculares, que estão no lugar das restantes torres defensivas. Passa-se na capela de São Dâmaso, mandada erguer em 1748 e, pelo caminho, João Robalo mostra os locais onde se faziam as matanças do porco e se penduravam os produtos do fumeiro. Era “a festa da família” e uma das muitas tradições que o motivavam, tal como o hábito de ir “buscar o leite com um fervedor à vacaria”, por exemplo. “Comprava-se diretamente e era tão bom...

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A Azinheira Grande

Ao longo do percurso, os olhos alcançam os palheiros de São Dâmaso, que servem de apoio à oficina de arqueologia e a residências artísticas, e também a ponte velha sobre o rio Pônsul. De presumível origem romana, esta travessia foi um elo de ligação do importante eixo viário entre Mérida (Emérita Augusta) e Braga (Bracara Augusta), e teve várias reconstruções ao longo da Idade Média. Atravessa-se o bairro do Cabeço e depois olha-se para a direita e vislumbra-se a azinheira grande, uma gigantesca árvore centenária cujas raízes se “agarram” às rochas: “Há pedras que já nem fazem parte da muralha, mas da azinheira”, ilustra o anfitrião. A imagem é inusitada e vale fotos curiosas...

Não se esqueça de ir à torre de menagem, que fez parte do castelo erguido pelos templários sendo construída sobre o pódio de um templo romano. O almoço aproxima-se e, como é habitual, os comensais vão-se dirigindo, em crescendo, para o largo da Amoreira e a esplanada da Casa da Velha Fonte na Casa da Amoreira, o único restaurante de Idanha-a-Velha. Para descansar tem o alojamento local Casa do Arqueólogo (tel.: 965428610), duas antigas casas de pedra recuperadas por arquitetos do Porto. No interior, existe uma escultura de metal do “arqueólogo Petrónio”, da autoria de Dora Tracana. O descanso da dona Maria Hermínia, com 98 anos, também é bem-merecido. A jovialidade da pessoa mais velha da aldeia talvez venha do solinho que lhe aquece as manhãs, nos bancos de granito de sempre.

Idanha-a-Velha
Paulo Chaves / Aldeias Históricas de Portugal

Este artigo foi adaptado do Guia das Aldeias Históricas de Portugal, oferecido com o Expresso, no dia 30 de maio de 2021

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