&conomia à 5ª

Odemira: os problemas que importam

No meio do turbilhão político e mediático, pode ser fácil perder de vista que o verdadeiro problema é a sobre-exploração a que os trabalhadores estão sujeitos

Quem assistisse a certos programas de televisão da última semana poderia achar que o problema dos trabalhadores agrícolas de Odemira é fundamentalmente um problema de imigração, relacionado com as mudanças à Lei de Estrangeiros realizadas em 2017. Seria um erro. A nova lei foi um passo positivo e importante no sentido de resolver as situações de irregularidade e a vulnerabilidade que lhes está associada, agilizando os processos e facilitando os agendamentos. Tornou mais fácil e menos vulnerável a vida dos imigrantes que se encontram em Portugal e tornou mais fácil vir para Portugal para viver e trabalhar, o que é positivo para os migrantes e para a nossa sociedade. O problema de Odemira não tem nada a ver com isso.

Quem, em contrapartida, escutasse as intervenções dos partidos de direita ou do bastonário da Ordem dos Advogados ao longo dos últimos dias poderia achar que o problema fundamental (“de direitos humanos”, segundo foi afirmado) teria sido a requisição civil do Zmar para alojamento de alguns destes trabalhadores no contexto do surto pandémico, dadas as condições insalubres em que se encontravam. Seria outro erro. Conforme o Daniel Oliveira já explicou aqui no Expresso, não esteve nem está em causa no Zmar a requisição civil de casas particulares: o que foi utilizado para alojamento temporário de duas dezenas de migrantes (não infetados com Covid-19, já agora) foram as casas do empreendimento hoteleiro situadas no mesmo parque. O governo esteve mal na comunicação, mas não na substância: é inteiramente legítimo e adequado proceder à requisição de uma unidade hoteleira quando isso é justificado por razões de saúde pública, como é o caso. Mas nem por isso a direita perdeu a oportunidade de demonstrar qual a hierarquia de direitos humanos que a move e preocupa.

Os problemas que realmente importam e devem importar a todos na questão de Odemira são outros: têm a ver com a sobre-exploração a que está sujeita grande parte destes trabalhadores migrantes. Essa sobre-exploração manifesta-se nos salários muito abaixo do mínimo legal que auferem na prática e nas condições duras e precárias de trabalho e de alojamento a que estão sujeitos. Resulta dos mecanismos de servidão por dívidas a que se sujeitaram para conseguirem vir trabalhar para Portugal, das várias camadas de intermediação existentes na relação laboral e dos mecanismos adicionais de exploração que se tornam possíveis pelo escassez e elevado custo do alojamento nas proximidades dos locais de trabalho.

O problema de Odemira é efetivamente um problema de direitos humanos, mas dos trabalhadores, não dos proprietários do Zmar. Esse problema não está na possibilidade de pessoas estrangeiras virem para Portugal em busca de trabalho e de uma vida melhor, como tantos portugueses fazem noutros locais. Está nas condições em que se veem forçados a fazê-lo, em resultado de uma legislação demasiado permissiva relativamente às empresas de trabalho temporário e outros intermediários laborais, e da insuficiente fiscalização (por insuficiência de recursos) por parte da Autoridade para as Condições de Trabalho.

Uma boa política migratória e laboral é aquela que permite às pessoas viverem e trabalharem onde desejam, mas que garante que isso não é usado para sobre-explorar os próprios nem para pressionar em baixa os direitos e condições laborais nas áreas de destino. Eis algo de mais relevante e estrutural para os agentes políticos se preocuparem quando o turbilhão mediático passar.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: alexjabreu@gmail.com

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