Bitcoin: nociva em mais do que um sentido
Para além do risco de instabilidade financeira sistémica que representa, a Bitcoin tem associado um consumo de energia que excede o de muitos países
Para além do risco de instabilidade financeira sistémica que representa, a Bitcoin tem associado um consumo de energia que excede o de muitos países
Há várias perspetivas pelas quais olhar para uma criptomoeda como a Bitcoin. Para algumas pessoas, o interesse é especulativo. Nos últimos seis meses, o preço da Bitcoin aumentou 360%, proporcionando ganhos consideráveis a quem comprou na altura e estiver a vender agora. Mas como sempre sucede com qualquer ativo, para que alguém venda a um determinado preço tem de haver quem compre a esse preço. Em termos agregados, os ganhos e as perdas dos vários investidores equivalem-se e compensam-se sempre: para haver quem ganhe tem de haver quem perca. Os lucros de quem já ganhou dinheiro a especular com a Bitcoin foram pagos por quem a detém neste momento – e esses poderão por sua vez ganhar também, se conseguirem vender em alta, ou serem eles a pagar a fatura, se ficarem sem cadeira quando a música parar.
Neste sentido, a Bitcoin é apenas o exemplo mais recente numa longa linhagem de euforias especulativas ao longo da história. Já em 1841, no livro Extraordinary popular delusions and the madness of crowds, o jornalista escocês Charles MacKay dedicou os três primeiros capítulos a contar a história de três bolhas especulativas notáveis dos séculos anteriores: as ações da South Sea Company em 1711-1720; as ações da Mississippi Company em 1719-1720; e a especulação em torno dos bolbos de tulipa (as flores), na Holanda, no início do século XVI. Em todos esses casos, os ativos em causa atingiram preços extravagantes e completamente desproporcionais face ao seu valor intrínseco, encorajados pela dinâmica de subida e pelo apetite pelo lucro. Todas elas terminaram como sempre terminam as bolhas: esvaziadas, com perdas para os últimos que entraram no jogo.
Poder-se-á argumentar que a apreciação da Bitcoin não é meramente especulativa, mas um reflexo do reconhecimento do seu valor intrínseco como alternativa às moedas tradicionais. É um argumento que não convence. É verdade que, para alguns utilizadores, as criptomoedas apresentam vantagens que justificarão o pagamento de um prémio, isto é, uma diferença positiva pela possibilidade de utilizar a moeda em questão. Para criminosos, o seu anonimato e não-rastreabilidade facilitam a fuga ao controlo das autoridades; para adeptos de certas correntes libertárias, o facto de contornarem e contestarem o controlo da emissão de moeda pelo Estado torna-as politicamente apelativas. Mas nada disso justifica as flutuações de preço que a Bitcoin tem registado, de cerca de 300 dólares por Bitcoin em 2015 para perto de 20 mil dólares em finais de 2018, novamente 3 500 dólares em 2019 e atualmente 46 mil dólares. Esta dinâmica é puramente especulativa, reflexo da “loucura das multidões”.
Tudo isto não passaria talvez de uma curiosidade, não mais relevante do que a bolha das tulipas holandesas do século XVI, se não fossem duas considerações adicionais. A primeira é que o crescimento do investimento em Bitcoin em resultado da dinâmica especulativa corre o risco de conferir-lhe dimensão sistémica. A capitalização total de mercado da Bitcoin está atualmente estimada em 1,1 biliões (milhões de milhões) de dólares – cerca de cinco vezes o PIB português e mais do que a capitalização bolsista do Facebook. Caso sofra um colapso semelhante ao que ocorreu em 2018, o risco de que isso desencadeie um colapso financeiro mais alargado, gerando uma espiral de insolvências e depreciação de ativos, é hoje em dia bastante maior do que há três anos.
Mas o maior problema de todos, que torna a Bitcoin verdadeiramente nociva e distópica, é, por incrível que pareça, o seu impacto ambiental. Isso deve-se às características simultaneamente engenhosas e absurdas de que esta criptomoeda foi dotada aquando da sua criação. Em cada momento, o número de Bitcoins em circulação não é nem fixo nem determinado por uma qualquer autoridade, mas antes dependente de quantas tenham sido “minadas” ou “extraídas” até ao momento através de processos informáticos, um pouco como se se tratasse de “ouro digital”. A “extração” de Bitcoins é feita através da resolução de algoritmos informáticos que exigem grande poder computacional e que se vão tornando cada vez mais complexos (logo, mais exigentes em termos de computação e consumo de energia) à medida que o número de Bitcoins já extraídas se vai aproximando de um teto máximo de 21 milhões (está neste momento em 18,5 milhões).
Ou seja, o impacto ambiental da Bitcoin é consequência de um consumo de energia que não serve qualquer propósito social a não ser proporcionar um mecanismo artificial de gestão da sua própria escassez. E não estamos a falar de quantidades pequenas: segundo ficámos a saber há algumas semanas, o consumo estimado de energia associado à extração de Bitcoin em todo o mundo é cerca do triplo do consumo de energia total de um país como Portugal.
Numa altura em que a superação das associações fortíssimas entre crescimento económico, consumo de energia, emissões de CO2 e alterações climáticas é um dos maiores desafios coletivos que temos pela frente, o desperdício de energia sem qualquer utilidade social associado à Bitcoin é um expoente de irracionalidade. Só por si, isso justifica uma atuação bastante mais robusta no sentido de regular e desencorajar o seu uso.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: alexjabreu@gmail.com