&conomia à 2ª

Crise que arde sem se ver

Seja no desemprego, no crédito malparado, nas falências de empresas ou na pobreza, os indicadores animadores dos últimos tempos assinalam o sucesso da estratégia de contenção, mas ocultam uma crise que alastra debaixo do radar

A crise que estamos a atravessar tem vários aspetos singulares. Um desses aspetos é a relativa invisibilidade, pelo menos temporária, de muitos dos seus efeitos. Perante uma quebra histórica do produto como a que ocorreu em 2020 e irá com certeza prolongar-se em maior ou menor grau para 2021, é surpreendente que a maioria das manifestações habituais de uma recessão façam sentir-se tão pouco. Em vários casos, os indicadores continuam até a evoluir positivamente, em supreendente dissonância com as expectativas e impressões generalizadas.

A taxa de desemprego estimada pelo INE continua a ser das mais baixas dos últimos vinte anos: 7,1% no 4.º trimestre de 2020. O desemprego registado pelo IEFP, 424 mil pessoas em janeiro de 2021 (ou 30% a mais do que no mesmo mês de 2020) mostra mais sinais de alarme, o que também se deve ao período de referência abranger já este segundo confinamento, mas ainda assim é semelhante ao que se verificava em 2017. Os níveis de crédito malparado (5,1% do total dos empréstimos no 3.º trimestre de 2020) são muito baixos para os padrões portugueses e continuaram em queda ao longo do ano de 2020. Os números mais recentes das falências e insolvências de empresas são também os mais baixos dos últimos anos e prolongam a tendência de queda. E ainda há poucos dias ficámos a conhecer os números do mais recente Inquérito às Condições de Vida e Rendimento em Portugal, que apontou para a continuação da queda da taxa de risco de pobreza e da taxa de privação material em Portugal. Como conciliar tudo isto com a queda brutal da atividade à nossa volta?

Estamos aqui perante vários efeitos, uns mais benignos do que os outros. Alguns indicadores têm um desfasamento significativo e estão necessariamente datados. É o caso dos dados relativos à pobreza e condições de vida, que têm por base um inquérito realizado em 2020 sobre os rendimentos de 2019. Como já aqui referi há algumas semanas, são excelentes notícias, mas infelizmente são notícias inevitavelmente desatualizadas.

Outros estão a ser contidos por medidas extraordinárias temporárias e outros efeitos. Sabemos que há pelo menos cem mil trabalhadores que não entram para as estatísticas por estarem a beneficiar de ações de formação e, neste momento, qualquer coisa como trezentas mil pessoas abrangidas pelo lay-off simplificado e apoios à retoma. Sabemos também que uma parte das pessoas que têm perdido o emprego têm transitado para a inatividade e não para o desemprego. A evolução do crédito malparado está ligada às máquinas por via das moratórias ao reembolso dos empréstimos, que estará a abranger qualquer coisa como 35% dos empréstimos às PME. E as estatísticas das falências e insolvências estão a ser contidas quer pelas moratórias ao crédito, quer pelo próprio impacto da pandemia e confinamento sobre o funcionamento do sistema judicial e o andamento dos processos de insolvência.

Isto não é necessariamente negativo. A contenção de processos de despedimento e episódios de incumprimento de crédito em catadupa, mesmo que através de medidas extraordinárias temporárias, é em si mesmo um contributo importante para mitigar a recessão. Uma crise contida nas suas principais manifestações é uma crise pelo menos parcialmente evitada, na medida em que se evita desencadear uma espiral recessiva.

Não se leia é nestes indicadores uma saúde que a economia e a sociedade portuguesas não têm. As perdas de rendimento são bem reais, principalmente para os trabalhadores precários e por conta própria. São muitas as micro e pequenas empresas que se aproximam do fim da linha e que encaram com grande apreensão o fim das moratórias. Mesmo que estatisticamente pouco visíveis, há muitos milhares de pessoas em Portugal a passar por situações muito difíceis. O avolumar das situações de pobreza e emergência social não é visível nas estatísticas, mas é indiciado pelo recurso acrescido às respostas de emergência social a nível local.

Debaixo da tampa, esta é uma crise que arde sem se ver. Os grandes desafios dos próximos tempos passam por responder adequadamente à emergência económica e social escondida e por encontrar formas de remover as medidas de mitigação extraordinárias sem com isso agravar a recessão.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: alexjabreu@gmail.com

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate