Pode passar senhor Doutor. Por favor, senhor Engenheiro. Não, faço questão senhor Arquitecto. Por quem sois, senhor Professor Doutor? Gosto em vê-lo senhor Professor Doutor Engenheiro.
Sem entrar no passado, pouco remoto, onde os títulos entravam nos livros de cheques…
Portugal. É um pouco isto. Geral. Em todas as organizações. Ou seja, um profundo provincianismo, com formalismo postiço à mistura. Uma cultura em que o título académico antes do nome define a pessoa. Não define.
Continuamos sempre a tropeçar em grandes adornos de CVs. Para quê? Um pedaço de papel substitui a essência de uma pessoa? É um Doutor melhor que um mestre de obra? Não é. Nunca foi. Nunca será. O que está escrito no papel não chega para avaliar o quanto cada um vale no seu trabalho, muito menos na vida.
Quem não se lembra de Álvaro Santos Pereira e da sua simplicidade? Um Professor universitário a pedir que o tratassem por Álvaro. Reacção? Comédia geral e sarcasmo ácido.
Mas esta coisa cultural, tão nossa, não desaparece. O tempo passa e não finda este elitismo bacoco, um pouco como a divisão entre “Doutores” e “Futricas” de Coimbra, espelhada, entre outras coisas, na rivalidade futebolística, vivida também de forma “calorosa” pelos adeptos, entre a Académica de Coimbra e União de Coimbra.
Não desvalorizo o estudo. A formação faz parte do crescimento da pessoa. Aliás, devemos estudar permanentemente. O estudo, a formação e a habilitação académica devem ser valorizados, claro que sim, mas a pessoa que fez um doutoramento não vale automaticamente mais do que alguém que tenha um percurso ascensional, por mérito da sua capacidade de trabalho e da sua visão.
Temos tantos casos de gente sem estudos ou com poucos estudos que vingaram na vida. Que construíram empresas, que criaram riqueza. Sim, gente rica. Gente que ganhou dinheiro e faz mexer a nossa economia. Steve Jobs e Bill Gates não concluíram as suas licenciaturas…
Nós somos o que vivemos. É inevitável. Não nascemos todos iguais, nem mesmo entre famílias. Somos produto do seio familiar, do meio onde estamos e estudámos, com quem convivemos. Do que lemos (quem lê), do que ouvimos, dos nossos dogmas, da nossa fé (quem tem). Tudo isso nos define. Os estudos são importantes. Claro que são. Não vou ao nível de acreditar que profissões específicas possam ser exercidas sem a devida e necessária qualificação académica. Precisamos de mais licenciados. Se formos consultar os números da Pordata, percebemos que existem em Portugal, cerca de 26,1% de licenciados entre os 25 e os 64 anos. É pouco. Muito pouco, comparativamente à média europeia que está acima dos 31%.
Eu sou um daqueles, ingénuos, que ainda acredita que a educação é, passe o chavão, um verdadeiro elevador social para uma vida melhor.
Todavia, não entro na histeria do Senhor Doutor de curso feito ser superior a quem quer que seja.
Num dos mais recentes casos polémicos com que nos deparámos foi a, já tão falada carta sobre a candidatura do futuro procurador europeu, em representação do Estado português. Como sempre, uma trapalhada. Mais uma. Com adornos curriculares. Para quê? Não era mais fácil assumir a preferência política? Não era mais fácil dizer que queriam aquele nome em vez de fingir imparcialidade com um concurso, alegadamente com critérios ex post ao elenco de candidatos, que vieram a alterar? Esta tentativa de nos fazerem de parvos é pior do que assumirem as suas opções. Um Governo deve tratar de governar, de administrar o Estado e zelar pelo bem da coisa pública. Tem legitimidade para escolher, não tem é o direito de nos fazerem de parvos, de nos tratarem como crianças, sem capacidade de explicar ou a inventarem supostas posturas de isenção. Assim não.
O expoente máximo, desta cultura inimiga do mérito e da competência, aconteceu numa cerimónia em que António Costa e Ursula von der Leyen foram oradores em Portugal e, claro está, lá vinha o Dr. antes de António Costa, quando a Presidente da Comissão Europeia tem muito mais estudos e títulos académicos que o nosso Primeiro-Ministro. Claro que não digo que tenha sido António Costa a escrever no púlpito tal distinção, mas esta foi, claramente, uma amostra da tacanhez lusitana.
Somos assim. Um país de doutores para mostrar, mas que precisa de perceber que não há doutores, nem portugueses de bem, muito menos de primeira e de segunda, melhores do que os outros. Ninguém. Existem cidadãos, com direitos e deveres. Ponto.
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