Segundo o Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos existe em Portugal mais de um milhão de jogadores online. Destes, mais de 27 mil pediram para ser impedidos de jogar em setembro de 2018, um aumento de 112% relativamente ao mesmo período do ano anterior.
Jogos e apostas online são decisões que envolvem risco. Quem joga fá-lo porque tem prazer em jogar, gosta do desafio e da adrenalina, mas sobretudo porque tem esperança de ganhar, em pouco tempo, uma fortuna. O problema é que a maioria dos jogadores ignora que os sites de apostas e os casinos online e offline foram feitos para lucrar com os seus clientes, em particular, para retirar vantagem dos enviesamentos cognitivos e das heurísticas a que estamos sujeitos.
Arriscar demasiado, quer em jogos de sorte e azar, quer em investimentos financeiros, está relacionado com a interpretação desajustada das probabilidades, com a aversão a perdas e com o excesso de confiança e otimismo. Entre os diferentes enviesamentos e heurísticas que explicam o processo de tomada de decisão em contexto de incerteza e risco, destaca-se a falácia do jogador e a falácia da “mão quente”. Ambas se baseiam na tendência humana em acreditar que eventos aleatórios, independentes, são afetados por resultados anteriores. A falácia do jogador manifesta-se pela crença de que um evento aleatório tem maior probabilidade de acontecer apenas porque não aconteceu há muito tempo, ou que é menos provável de ocorrer porque já ocorreu repetidas vezes. Por exemplo, se todas as semanas comprar uma raspadinha e, semana após semana, não ganhar um tostão, começa a achar que “desta é que é, porque o azar não dura sempre”. A falácia da “mão quente”, por sua vez, implica acreditar-se numa autocorrelação positiva de eventos sequenciais independentes. A expressão “mão quente” é oriunda do basquetebol e caracteriza um jogador que marca muito num determinado jogo, levando comentadores a acreditarem que a probabilidade desse jogador marcar nesse jogo é maior do que o habitual, porque está “on fire”, ou com a “mão quente”. Esta falácia implica que quando estão a ganhar, em vez de pararem, os indivíduos continuam a apostar mais, simplesmente porque estão “em maré de sorte”.
Um terceiro fator que pode afetar a tomada de decisão em contexto de risco é o chamado “efeito do dinheiro da casa”, ou seja, as pessoas estão dispostas a correr mais riscos se tiverem ganho dinheiro em ocasiões anteriores. Por exemplo, os indivíduos tendem a ser menos cuidadosos a jogar com dinheiro que ganharam através do jogo do que com dinheiro que vem do ordenado. Este efeito difere da falácia da “mão quente” e da falácia do jogador, na medida em que ele não afeta realmente as probabilidades percecionadas, mas sim a predisposição ao risco.
Há ainda dois outros fatores muito relevantes na decisão de jogar e jogar mais arriscadamente, e que estão na base na chamada teoria dos prospetos desenvolvida por Kahneman e Tversky. Por um lado, existe uma aversão à perda, ou seja, os indivíduos gostam menos de perder do que gostam de ganhar pelo que, quando confrontados com perdas, tomam decisões mais arriscadas de modo a tentar “dar a volta ao resultado”. Por outro lado, existe uma interpretação subjetiva das probabilidades. Em particular, quanto mais aliciante é o prémio, mais os indivíduos desvalorizam a probabilidade baixa de o obter, focam-se no valor do ganho potencial e arriscam mais.
Todos os jogadores são, em geral, mais ou menos afetados por estes enviesamentos e heurísticas. No entanto, há aqueles que se conseguem aperceber destas falhas, parando de jogar antes de somarem perdas avultadas, e aqueles que não se apercebem destes enviesamentos, ou mesmo tendo consciência deles, não conseguem parar de jogar. O vício ao jogo, assim como a dependência do álcool e drogas, não consegue ser explicado pela teoria económica neoclássica. Ou melhor, aplicando esta teoria, estes comportamentos destrutivos seriam racionalizados como meras preferências, mais especificamente uma fraca preferência pelo o futuro em prol de maior prazer no presente. Mas a verdade não é bem esta. Muitos indivíduos querem parar de jogar, têm consciência que essa é a melhor decisão para o futuro, planeiam o fazer, mas, chegado o momento, caem em tentação.
A compulsividade e a tentação estão relacionadas com algo que também nos afeta a todos, neste ou em outros contextos, que é o facto de termos preferências inconsistentes ao longo do tempo. Por exemplo, imagine que este fim-de-semana, no sábado, tem uma festa. No entanto está de dieta e se consumir muitos doces na festa terá de despender uma hora extra no ginásio no domingo. Cálculos feitos aos custos e benefícios das suas ações, hoje, sexta, planeia ir à festa e não ingerir muitos doces. O problema é que amanhã, ao recalcular os custos e benefícios, a decisão será outra, e acabará por ingerir mais açúcar do que na sexta, racionalmente, lhe faria sentido. O que acontece é que tendemos a reduzir o valor das coisas quanto mais no futuro as recebemos. Segundo o exemplo, o valor dos doces na festa de amanhã é hoje mais insignificante do que o valor doces amanhã. Um jogador viciado por muito que tenha consciência que não vale a pena jogar num determinado dia, chegado esse dia, a avaliação dos potenciais ganhos é mais positiva.
Os 27 mil jogadores que pediram para serem impedidos de jogar online ganharam consciência, sozinhos ou com ajuda especializada, da tentação que sofrem e preferem restringir o seu campo de ação por forma a evitar cair em tentação. No exemplo da festa, o equivalente seria pedir a um amigo que fosse a sua casa no sábado por forma a evitar ir à festa. Quando se ganha consciência dos problemas de autocontrole diz-se que os agentes económicos, apesar de sofrerem de inconsistências intertemporais, são sofisticados. Ao passo que aqueles que não têm consciência do seu problema, e continuam a fazer escolhas assumindo que as suas preferências são consistentes, são apelidados de naïves.
Os problemas de dependência e autocontrole são complexos, tendo vertentes fisiológicas, neurológicas e comportamentais. Por exemplo, estão identificadas áreas do cérebro, nomeadamente o córtex pré-frontal dorsolateral, que estão relacionadas com a predisposição ao autrocontrole e disciplina. Mais, problemas de autocontrole, compulsividade e tentação são também maiores em situações de stress e em casos onde os indivíduos já estão exaustos por exercer autocontrole. Por exemplo, se for viciado no jogo, esse vício piora se estiver, no momento, a tentar deixar de fumar ou a fazer dieta.
Por último, convém referir que os enviesamentos que aqui se elencaram, sobretudo a falácia do jogador e o “efeito do dinheiro da casa”, afetam também, e muito, os investidores no mercado financeiro, não faltando estudos que assim o demonstram. No entanto, não há muita informação sobre a tomada de consciência por parte de investidores financeiros para eventuais problemas de compulsividade e autocontrole, problemas estes que podem também estar na base de muitos investimentos catastróficos.
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