Chamem-me o que quiserem

Brexit: requiem para um emaranhado europeu

Brexit: requiem para um emaranhado europeu

Henrique Monteiro

Ex-Diretor; Colaborador

Os esforços para a unificação da sociedade, desde os primórdios do mundo à recente construção europeia, é a abordagem deste terceiro ensaio sobre o Brexit - em que, num tempo de universalismo e globalização, um país quer (quer?) voltar ao seu útero, à sua pequena concha

Tomando emprestada uma trilogia alinhada por Yuval Noah Harari, que me parece operativa para o efeito, ao longo da civilização o ser humano foi caminhando para uma sociedade unificada. Harari começa por referir o dinheiro e o comércio. A moeda, artefacto antigo cujo valor é meramente convencional, foi a primeira dessas unificações. A prova é que os cristãos recebiam dinares com inscrições de Alá e os muçulmanos nunca desprezaram uma moeda com uma cruz de Cristo a lembrar a sua origem. O dinheiro, o ouro, tornou-se rapidamente reconhecido e apreciado em todo o mundo.

O segundo unificador foi o desejo político do Império, a ideia de que um Estado deveria abarcar todo o mundo. Ainda antes de Cristo, Alexandre tentou conquistá-lo (ou aquilo que era à época, para ele, o mundo), assim como a dinastia Qin (que deu o nome à China). Os Romanos, os Hunos, os Mongóis, ou mesmo, há menos de 100 anos, Hitler, sonharam algumas vezes com o domínio do planeta.

O terceiro fator foi a religião e as ideologias. Católico significa universal. E universalistas são os muçulmanos e os budistas (se é que o budismo é uma religião). O marxismo, os princípios essenciais do mercado, ou o que chamamos capitalismo, e outros conjuntos de ideias construídas pelos homens, mais ou menos utópicos, como os Direitos Humanos ou a busca da felicidade, destinam-se a todos os seres, em todas as latitudes e longitudes, sem discriminação de etnias, de crenças, de género. Ou, pelo menos, com cada vez menos discriminações.

As organizações internacionais, sejam a ONU ou as que juntam continentes, caminham no mesmo sentido. Assim foi com a Europa depois de duas guerras destrutivas. Começando a construir a unidade naquilo que essencialmente a dividira – a posse de matérias primas como o carvão e o aço. A primeira Comunidade, justamente do Carvão e do Aço, juntou, em 1952, sete anos depois do fim da II Guerra, a Alemanha, a França, o Benelux (Bélgica, Holanda e Luxemburgo) e a Itália. Evoluiu para CEE – Comunidade Económica Europeia – com o Tratado de Roma, em 1957. Mais tarde, em 1967, quando a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço se juntou à Comunidade Europeia da Energia Atómica (Euratom), em conjunto com a CEE passaram a ser todos governados por um só conselho e uma só comissão. A Europa passou a ter os alicerces da arquitetura que hoje conhecemos.

Assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à CEE, no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa
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O Reino Unido, a Irlanda e a Dinamarca juntaram-se aos seis fundadores em 1973. Em 1980 entrou a Grécia e, em 1986, chegou-se aos 12, com Portugal e Espanha. Nos dias de hoje vai em 28 países.

Em Maastricht, em 1992, lançam-se as bases da moeda única e da União Europeia; em 1997, cria-se o espaço de “liberdade, segurança e justiça”; o tratado de Nice faz uma reforma institucional e o tratado “porreiro, pá” de Lisboa, em 2007, emenda Maastricht e Roma, reforça o voto por maioria qualificada (acabando com a necessária unanimidade para tudo) cria um presidente do Conselho, uma espécie de ministro dos Negócios Estrangeiros, faz uma Carta de Direitos Fundamentais (A Carta da União, que em formato pequenino ficou conhecida como ‘vitorino’, em homenagem ao nosso ex-comissário António Vitorino), o que a juntar ao Euro, que entrara em vigor em 2002, de forma material (de forma não material existia desde 1999, e no Direito desde Maastricht), transformou a União Europeia num quase Estado Supranacional.

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O Euro foi adotado em 19 dos 28 países da União e ainda em mais alguns que não fazem parte (Kosovo, Macedónia e até Zimbabwe, além de países que indexaram a sua moeda à europeia, como Cabo Verde, entre vários). O Reino Unido e mais sete países (Suécia, Polónia, República Checa, Roménia, Bulgária, Croácia e Hungria) não usam a moeda europeia e continuam com as suas.

Se acham isto confuso (e eu acho), temos ainda de falar de Schengen, que aboliu as fronteiras internas, tal como já existia no Benelux (Schengen é uma localidade no Luxemburgo). Ao acordo com o nome da localidade vão aderindo países (há 25, incluindo três que não são da UE – Noruega, Suíça e Islândia). Mas há igualmente os que não aderiram, como o Reino Unido (que, no entanto, tem um acordo de cooperação judicial e policial), e os que estão à espera, como a Roménia, Bulgária e Croácia.

Posto isto, a UE, que tem um Parlamento, um Governo (Comissão), um Presidente, uma política externa (teoricamente), um conselho de ministros dos Estados que fazem parte, liberdade de circulação de capitais, pessoas e bens; fronteiras comuns e moeda comum poder-se-ia considerar um protoimpério. As suas leis, recomendações, os seus tribunais, a sua arte, tudo nela aspira à universalidade. Contra tem a demografia e as enormes barreiras linguísticas, mas estas últimas tinha-as igualmente o Sacro-Império, o Império Romano, o de Alexandre e até o de Qin.

É este espaço enorme que vê um país (que é um dos quatro maiores) querer sair, apesar de já não fazer parte do acordo das fronteiras, ainda que a sua fronteira com a Irlanda do Norte fosse aberta por via do acordo de cooperação; e não fizesse parte da moeda comum (ainda que em muitos locais de Londres se pague com euros).

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Claro que isto dá seis episódios do “Yes Minister” e quatro dos Monty Python. Ninguém sabe bem o que fazer salvo que o Reino Unido, levado por uns demagogos que, entretanto, saíram de cena, achou que era melhor estar fora, porque lucraria mais. Os 51,8% que há quase três anos votaram a favor da saída, talvez percebam agora que não ganham nada com isso, talvez até percam.

Seria interessante perguntar a solução a Boris Johnson e a Nigel Farrage, por exemplo, um conservador e outro nacionalista de direita, o que propõem. Como perguntar ao líder dos Trabalhistas, que é anticapitalisticamente antieuropeu, Jeremy Corbyn, o que quer ele? Salvo se for como o nosso Bloco de Esquerda, que ainda agora mentiu ao dizer que nunca quis sair do Euro.

Será que estes ilustres súbditos de Sua Majestade não pensaram na fronteira da Irlanda? Nas mercadorias que passarão a ser mais caras, depois de taxadas? Na dificuldade das fronteiras – desde o Túnel da Mancha, para o Eurostar, mais uma fronteira terrestre, chamemos-lhe assim? E o resto? O futebol, olha o futebol, onde os extracomunitários são estrangeiros, onde tanto se vive de argentinos que são italianos; brasileiros que são também portugueses; malianos, marfinenses e o que mais for que são, igualmente, franceses?

Não pensaram? E deixaram a pobre Theresa May a fazer o papel de desgraçada. Foi Cameron que teve a ideia de fazer o referendo. Era para travar os eurocéticos… boa ideia! Viu-se!

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Agora… seria depois de amanhã a saída. Desordenadíssima. Uma vergonha para britânicos e europeus. Está adiada… uns dias, até 12 de abril… Ou será uns meses? Uns anos? Para sempre? A menos que hoje, lá pelas oito da noite, o Parlamento, que chamou a si a resolução do problema que nunca conseguiu resolver, tire das cartolas dos seus membros ou da gravata do seu speaker uma solução inesperada. Mas não, ninguém acredita em nada.

A Europa construiu-se com o torcer de nariz do Reino Unido, mas com o Reino Unido. A Europa nunca foi um espaço consensual onde reinasse a harmonia. A teoria da bicicleta, de andar sempre em frente para não cair, não é eterna. Os homens precisam de se adaptar às novas realidades.

No início do texto, quando falei de mercadores, dinheiro, impérios, religiões, ideologias que tenderam sempre para a unificação do mundo, tudo se deu em centenas, senão milhares de anos. Não é ainda claro como se exerce a democracia em espaços com tradições, mitos fundacionais e línguas diferentes, como é a Europa. Que temos em comum? O medo dos hunos e dos mongóis? O Cristianismo? Talvez, mas pouco mais. E o futuro, sendo de grandes espaços, será democrático ou descambará para demagogias cada vez mais claras, como o caso de Trump ou Bolsonaro, ou para aristocracias tirânicas financeiras e políticas, como na China? É possível viver como até aqui? Que faz o Reino Unido senão voltar ao seu útero, à sua pequena concha, com medo do futuro? Que têm os europeus para lhes oferecer a fim de superarem o medo? Mais burocracia, menos democracia, mais cinismo? Haverá alguém no Reino Unido que não tenha medo do povo? Dos que são a favor da saída e contra a saída? Haverá alguém na Europa que não tenha medo dos outros, dos migrantes, dos que fogem; da enorme confusão em que tudo se tornou, seja na política pura e dura, seja nas fronteiras, nos desejos igualitários, nos ideais politicamente corretos que não podem ser postos em causa? Que raio! A vontade que também eu teria de sair, acaso não compreendesse racionalmente que o ‘Portexit’ era um erro descomunal.

Caminhamos para a unificação, mas temo muito que seja em processos não democráticos, não abertos, não participados; ininteligíveis pelos eleitores, pelos povos, pelos cidadãos.

O que fazer? Não sei. Nada me ocorre a não ser a contradição do sair ficando ou do ficar saindo. No fundo, é a mitos assim que mais recorremos: “Requiem aeternam dona eis, Domine et lux perpetua luceat eis” (“Senhor dai-lhes o eterno descanso e que a luz perpétua os ilumine”).

É possível que se faça luz no nosso eterno repouso? Se for, estamos salvos. E a velha Europa e o Reino Unido apenas necessitam de um milagre.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: hmonteiroexpresso@gmail.com

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