Paulo Anunciação é casado com uma inglesa e vive em Londres desde 1998. Depois de elaborar um diário sobre o Brexit para a revista E do Expresso, que pode ler AQUI, vai continuar esta semana no site do Expresso com esse mesmo diário. O Brexit está marcado para esta sexta-feira mas pode ser adiado
29 de março, sexta-feira (1)
Em Londres é raro encontrar um sorriso e a palavra Brexit na mesma frase. A capital está repartida em 33 círculos eleitorais e apenas cinco tiveram uma maioria de votos a favor da saída da União Europeia. Ao todo, 2,3 milhões de eleitores londrinos votaram Remain e 1,5 milhões a favor do Brexit. No meu distrito eleitoral, Richmond upon Thames, o Remain ganhou com 69 por cento dos votos. O distrito mais anti-Brexit foi Lambeth (quase 79 por cento dos votos), curiosamente uma das áreas mais portuguesas de Londres. A nível nacional, aliás, nenhum outro círculo eleitoral teve uma percentagem tão grande de votos a favor do Remain. Não é frequente, portanto, ouvir vizinhos a louvar o Brexit. “Se não fosse o resultado do referendo não estaríamos a viver aqui”, diz-me Paula, que vive no número 24 da minha rua. Paula e Les têm um filho de dois anos e compraram a casa em 2018. O mercado imobiliário sofreu um grande abanão com os resultados do referendo de Junho de 2016. Os vendedores, agora, têm de esperar, em média, um número recorde de 77 dias até receber a primeira oferta de compra. A incerteza quanto ao futuro do país deixou vendedores e compradores de pé atrás, à espera do resultado das negociações que se arrastam há mais de dois anos. Em Setembro, o governador do Banco da Inglaterra, Mark Carney, disse que o valor das casas poderá cair cerca de 35 por cento nos próximos três anos no caso de um Brexit sem acordo. A família francesa que vivia no número 24 está em processo de divórcio e precisava mesmo de vender a casa. O preço sofreu cortes sucessivos de centenas de milhar de libras. Paula e Les são sul-africanos e aproveitaram igualmente a desvalorização da moeda. Em Junho de 2014, a libra chegou a valer 1,72 dólares. Agora está nos 1,32 dólares. Leio no The Economist que o mais provável é acabar nos 1,13 dólares no caso, mais uma vez, de Brexit sem acordo. “Sem a vitória do Brexit muito provavelmente não teríamos esta casa”, diz ainda Paula, com um sorriso nos lábios.
27 de março, quarta-feira (2)
A grelha de programação que a BBC1 anunciou há muito tempo para o serão de sexta-feira, dia 29, mantém-se inalterada: o habitual noticiário das 22h, seguido de um boletim especial de uma hora dedicado integralmente ao Brexit Day. Para as 23h35 está agendado o filme Sliding Doors (Instantes Decisivos, na versão portuguesa). Esta fita de 1998 com Gwyneth Paltrow e John Hannah gira à volta de uma história sobre uma decisão tomada numa fracção de segundo e as diferentes consequências que essa decisão pode desencadear. Não sabemos se a escolha deste filme terá sido totalmente ingénua e fortuita. Mas agora que os programadores da BBC já sabem que o Brexit Day foi definitivamente adiado – para 22 de maio ou 12 de abril, pelo menos – será que eles vão mesmo manter o Sliding Doors? Não faria mais sentido, por exemplo, transmitir a peça À Espera de Godot?
27 de março, quarta-feira (1)
Antes do Brexit, o Reino Unido teve apenas dois referendos a nível nacional: em 1975 (sobre a entrada na Comunidade Económica Europeia) e em 2011 (sobre a reforma eleitoral). Nestes dois referendos, o voto popular alinhou sempre com a opinião maioritária dos deputados britânicos. Em 2016, no referendo do Brexit, foi diferente. Quase 52 por cento dos eleitores votaram Leave, enquanto cerca de 75 por cento dos deputados actuais votaram Remain. A questão complicou-se ainda mais já que a maior parte dos deputados que votaram Leave não concorda com a forma como o Governo interpretou os resultados do referendo. A democracia directa incompatibilizou-se com a democracia parlamentar – e os resultados estão à vista. Muitos países resolvem este tipo de problema com a repetição do referendo. Os eleitores foram chamados a repensar e a votar em novos referendos, por exemplo, na Dinamarca (em 1993, sobre o Tratado de Maastricht) e na Irlanda (em 2009, sobre o Tratado de Lisboa). No sábado passado, as ruas do centro de Londres encheram-se com centenas de milhar de pessoas que exigiam precisamente a repetição do voto popular. Um novo referendo seria feito numa base sociológica diferente. Muitas pessoas idosas, que em 2016 eram maioritariamente a favor do Brexit, faleceram entretanto (mais ou menos 500 mil britânicos morrem cada ano). E entrou uma nova geração, mais nova, mais próxima da Europa. Coloco essa questão ao professor Ian Kershaw, que nos últimos anos publicou dois enormes volumes sobre a História da Europa nos séculos XX e XXI. “A repetição do referendo seria, sobretudo, uma atitude muito pouco britânica. O Brexit rachou o país ao meio. Lamento imenso esta decisão de 2016. Mas a inversão do processo do referendo abriria a porta a inúmeros problemas políticos”, explica o historiador.
26 de março, terça-feira
Visita ao meu Waitrose local (Waitrose também é o supermercado oficial da rainha e do príncipe de Gales, mas nunca os vi por lá). Os britânicos, leio nos jornais, aparentemente estão a armazenar enlatados, chocolates Mars, massas italianas, leite de coco e azeitonas. Muitos supermercados referem vendas anormais de papel higiénico e de comida para animais, produtos cuja procura em alta reflecte duas das maiores obsessões nacionais: os movimentos intestinais e os animais de estimação. O Reino Unido é um dos maiores importadores mundiais de papel higiénico. A corrida aos supermercados foi provocada pelos artigos alarmistas publicados recentemente nos tablóides sobre a provável escassez do produto no caso de um Brexit sem acordo. Na semana passada, a firma alemã Hakle gentilmente enviou 90 pacotes de 16 rolos de papel de luxo “Dream Soft” para o palácio de Buckingham (a oferta foi recusada; os rolos foram remetidos para um liceu público local). A obsessão com os animais de estimação é mais compreensível. Para muitos ingleses, a única forma de ter uma relação afectiva com outro ser vivo é ter um cão, um gato ou um coelhinho em casa. No Waitrose cruzo-me com o simpático empregado Omar, um estudante-trabalhador português com quem por vezes troco banalidades sobre o nosso futebol. Fomos verificar. Tanto a secção de papel higiénico como a de comida de animais tinham buracos nas prateleiras e vários papelinhos a dizer Produto Temporariamente Esgotado. Mas eu estou determinado em não perder a calma.
25 de março, segunda-feira (3)
Escrevo esta nota a poucas horas do Montenegro-Inglaterra, o segundo jogo da selecção inglesa de futebol na campanha de qualificação para o Euro 2020. Comandada pelo treinador Gareth Southgate, a jovem equipa da Inglaterra chegou às meias-finais do Mundial da Rússia no ano passado – um feito que não acontecia há quase três décadas – e terminou a prova num surpreendente quarto lugar. A equipa mais multirracial da história do futebol inglês, com 11 jogadores de origem africana ou caribenha, encantou com o seu futebol directo e alegre. O treinador Southgate, de 48 anos, conquistou a nação com um discurso ponderado, franco e lúcido. “O nosso país tem atravessado momentos difíceis, recentemente, em termos de unidade e identidade”, disse na altura Southgate, numa referência clara ao processo do Brexit. “Fico contente se o futebol puder ajudar [a unir]”. Num período conturbado da história do Reino Unido, Gareth Southgate conquistou o difícil estatuto de unanimidade nacional. Na sexta-feira, a equipa goleou a República Checa (5-0) no primeiro jogo de qualificação. Os jornais voltaram a encher-se de elogios a este treinador que fala sobre identidade nacional com muita clareza e de uma forma mais inteligente do que qualquer líder partidário. Enquanto as manchetes nas primeiras páginas reflectem a bagunça do Brexit e suas divisões irreconciliáveis, as últimas páginas, com as notícias de futebol, falam de uma Inglaterra cada vez mais unida. Há quem defenda que se entregue a pasta do Brexit a Gareth Southgate. “Ele deveria tomar conta das negociações”, diz John Cross, editor de desporto do Daily Mirror. “Southgate tem um projecto e prepara bem a equipa. Faz o trabalho de casa. Mostra verdadeira liderança. Conseguiu unir o país”.
25 de março (2)
Mensagem do meu filho Lourenço, que estuda Filosofia e Língua e Cultura Russas na Universidade de Edimburgo. Manda-me um texto com uma piada que circula nos corredores da faculdade. Aparentemente há um novo verbo na língua russa: брекзить [Brexitar] - я брекжу, ты брекзишь, он брекзит [Dizer adeus, mas sem nunca sair].
25 de março (1)
Ao longo da semana passada fui várias vezes ao St. George’s Hospital em Tooting, um bairro na zona sul de Londres. O meu sogro foi submetido a uma artroplastia da anca e a recuperação pós-operatória (ele tem quase 91 anos) está demorada. Como todos os outros hospitais públicos britânicos, o St. George’s emprega um número significativo de estrangeiros. O meu sogro parece gostar particularmente de Bridget, uma enfermeira zimbabuena de mãos de aço e sorriso enorme. Também me cruzei com o italiano Matteo e a portuguesa Raquel. O Serviço Nacional de Saúde (NHS) britânico emprega quase sete mil portugueses, mas o número deixou de aumentar após o referendo de 2016. “A única coisa que tem aumentado é a ansiedade. E o número de frigoríficos”, diz-me Avnish, um médico indiano. No ano passado, o Ministério da Saúde destacou 10 milhões de libras para a compra de cinco mil frigoríficos que têm sido utilizados, desde então, para armazenar quantidades enormes de medicamentos importados. O NHS quer estar pronto para as perturbações nos fornecimentos de fármacos que um Brexit sem acordo irá inevitavelmente provocar. “Tornei-me no maior comprador mundial de frigoríficos e não estava à espera disso”, disse o ministro Matt Hancock com uma franqueza inesperada numa entrevista ao programa Newsnight da BBC2, em Dezembro. Hancock, de 40 anos, foi nomeado ministro da Saúde no Verão passado. Em Westminster ele é conhecido como Minister For Fridges, o ministro dos frigoríficos.
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