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O médico trata do corpo e ele trata da alma

O médico trata do corpo e ele trata da alma

Nuno Rosário é o capelão da liga mundial de surf na Europa. Tem como função “servir” os surfistas, as suas famílias, o treinador, o pessoal da organização e quem mais precisar, “independentemente da fé”. Não se impõe. Ouve, conversa e “conforta”. O Expresso está em Peniche a acompanhar a 10ª e penúltima etapa do campeonato mundial de surf

O médico trata do corpo e ele trata da alma

Helena Bento

Jornalista

Para explicar qual é o seu papel aqui, Nuno Rosário costuma recorrer a uma analogia que ouviu da boca de alguém: o médico do campeonato trata do corpo e ele trata da alma. Diz que está aqui para “servir e confortar”. Para servir os surfistas, as suas famílias, o treinador e as pessoas que trabalham na organização do evento, “independentemente da fé de cada um” (ele é evangélico). Está disponível para ouvir, conversar, aconselhar e rezar pelos surfistas. Também ajuda em questões mais práticas, como ir levar ou buscar algum atleta ao aeroporto. Uma vez recebeu em sua casa um surfista que ia participar num campeonato mundial de juniores que se realizava dali a poucos dias e tinha combinado pernoitar “num sítio pouco adequado”. Nuno deu-lhe estadia e “recebeu-o como se fosse família”. Dias depois, o treinador telefonou a agradecer a Nuno e disse-lhe que o rapaz tinha conseguido um dos melhores resultados no campeonato graças ao apoio dele.

Nuno Rosário é membro do Christian Surfers International, um movimento internacional de cristãos surfistas que surgiu em 1990 e está presente em mais de 30 países. Há cerca de seis anos voluntariou-se para desempenhar a função de capelão nas competições europeias da liga mundial de surf. Nos últimos anos, tem estado presente no campeonato em Peniche e nas duas principais provas portuguesas de qualificação, que decorrem nos Açores e Carcavelos. Reconhece que no início foi “difícil” explicar às pessoas a sua função, e que às tantas até chegou a ficar com dúvidas e a questionar-se se “realmente estava a fazer alguma diferença”. Apesar de em Inglaterra todos os clubes de futebol terem um capelão e de o campeonato mundial de surf ter um capelão há 15 anos, como refere, ele foi o primeiro a assumir esse papel nas provas de qualificação realizadas na Europa. Apesar das dúvidas, o tempo foi bondoso e agora não problemas em assumir-se como um “pioneiro”.

Nuno Rosário atravessa a estrutura montada na praia de Supertubos para acolher surfistas, jornalistas e pessoal da organização, e não passa despercebido. É visto, cumprimentado, há quem o abrace e troque algumas palavras. Já o seu papel enquanto capelão deve ser “o mais discreto possível”. Diz que em tantos anos de capelania é a segunda vez que dá uma entrevista. Já os seus colegas, que fazem o mesmo que ele faz mas nos outros continentes, nunca falaram aos jornalistas. “Neste circuito em que se compete ao mais alto nível, vir falar com o capelão pode ser muitas vezes visto como um sinal de fraqueza”, diz, excluindo de imediato os brasileiros, “que não têm esse complexo e estão mais à vontade com a sua fé”.

Calado pelo sigilo e pelo compromisso, Nuno revela-nos apenas que há um problema que afeta muitos dos surfistas - “mais do que nós pensamos” - que competem nas provas de qualificação para o circuito mundial de surf. Tratando-se de atletas com menos reconhecimento e apoio dos patrocínios, muitas vezes enfrentam dificuldades financeiras que os obrigam a endividar-se e a pedir dinheiro às famílias para poderem viajar e participar nas provas. “Quem assiste a estes campeonatos ao vivo, não sabe que por detrás deste glamour todo há uma realidade menos agradável à vista. É o outro lado da lua, essa parte mais escura, que a gente não vê”.

E nesse outro lado mais escuro estão também “as viagens intermináveis, os hotéis, os aeroportos e as “dez ou mais pranchas" que têm de carregar, a família longe, os amigos longe, “a vida que arriscam” a troco de “quase nada”. “Se compararmos com outros desportos, como o ténis e o golfe, os surfistas não ganham quase nada. São muito poucos os que conseguem obter um verdadeiro retorno do seu trabalho ou viver apenas do surf”, diz. Ao tocar neste assunto, Nuno relembra o caso de CJ Hobgood, o surfista norte-americano que foi campeão mundial em 2001, ano em que o circuito foi interrompido após a queda das Torres Gémeas, e que está agora de saída da elite mundial. “Ele tinha tudo, mas a vida dele deu uma volta gigante e de um momento para o outro quase saiu do circuito mundial. Queria casar-se mas não tinha dinheiro. Estava desesperado. Foi o irmão [Damien Hobgood, também surfista profissional] que o incentivou a voltar ao surf, ao dizer que Deus lhe tinha dado um dom e que ele devia pegar na prancha e ir surfar. E foi isso que ele fez. Logo de seguida, veio aos Açores, venceu o campeonato e foi com o dinheiro que ganhou nessa prova que se casou”.

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