Inês gostava da bata “azul clarinha” que vestia todos os dias antes de sair para as aulas no liceu Rainha D. Amélia; antes da revolução de 1974 a bata era obrigatória nos liceus femininos... porque era uma forma de vestir as meninas da mesma maneira. Os defensores diziam que evitava vaidades, os detratores que uniformizava. Mas a verdade é que a maioria das meninas não se importava com isso, mesmo que no princípio da década de 1970 se irritasse com o excessivo comprimento das batas porque a moda da minissaia fazia furor.
Inês sentia-se importante quando vestia a bata; andava sempre vigiada... afinal era filha de um ministro! O pai tinha 37 anos quando Marcello Caetano o nomeou para tutelar a pasta dos Negócios Estrangeiros; o último chefe de Governo da ditadura portuguesa queria colaboradores mais jovens para transmitir uma imagem de renovação. Rui Patrício – conhecido por carregar os rrr quando falava – tinha sido um brilhante aluno da Faculdade de Direito de Lisboa e era neto e filho de embaixador. Aceitou um cargo que lhe dava privilégios e protagonismo, e uma tarefa impossível de cumprir porque Portugal era cada vez mais mal visto pela comunidade internacional por causa da Guerra Colonial.
Na madrugada de 25 de Abril de 1974, a vida da família mudou para sempre. Essa quinta-feira seria vivida como um dia de grande intranquilidade no apartamento onde moravam na Av. Infante Santo. Patrício deixou de ser ministro... e ficou sem trabalho; nos meses seguintes a família foi vivendo com a ajuda do avô de Inês.
O golpe falhado do 28 de Setembro de 1974 apanhou Rui Patrício em Paris, cidade onde procurou refazer a vida no setor privado. Os filhos foram ter com ele alguns meses depois e, em 1976, o ex-ministro mudou-se para o Rio de Janeiro.
A filha mais velha de Rui Patrício foi a primeira a juntar-se ao pai, porque tinha de fazer o vestibular [exame de acesso] para se matricular na Universidade: “Só conhecia a palavra vestibular dos livros do Tio Patinhas... foi difícil porque tive de fazer exames de Física e Química e não tinha feito essas disciplinas em Portugal”.
Passou e matriculou-se em Economia: “Fiz essa escolha muito influenciada pelo meu pai e entrei achando que ia ser infeliz. Mas quando lá cheguei identifiquei-me totalmente com o curso”. Tanto que se doutorou e seguiu a carreira académica.
Aquela mistura de rebeldia, preocupações sociais, com os tiques de portuguesa tornava-a diferente das suas colegas brasileiras. Deu nas vistas quando entrou na Universidade... era uma novidade! “Ela tinha um brilho especial... e foi a minha grande amiga dessa época”, contou a professora universitária Célia Lessa Kerstenetzky, recordando com entusiasmo os tempos em que ambas eram estudantes da licenciatura em Economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Falava de forma diferente, vestia-se de maneira diferente e era “muito inteligente” recorda o cientista político Octavio Amorim Neto: “E muito bonita. E depois a gente ficava a pensar naquela história do pai que um dia vai dormir sendo ministro e no outro dia acorda sem emprego e a ter de ir para o exílio uns meses depois”. No livro da jornalista Leonor Xavier “A vida conta-se inteira”, o pai diz que Inês se integrou rapidamente “naqueles movimentos esquerdistas de estudantes, apesar de ter andado no colégio de freiras em Portugal".
Um dos seus amigos esquerdistas do final da década de 1970 chama-se Aldo Rebelo; ou melhor, Aldo era grande amigo (e assim continuou pela vida fora) do namorado de Inês, Luís Fernandes. Para Rui Patrício ele era apenas um daqueles comunistas amigos da filha mais velha, que frequentava a casa que arrendara para viver com a família no bairro de Santa Teresa.
Em março de 1979 o Brasil começou a mudar, com a posse de João Figueiredo, o 30º PR do Brasil e o último da Ditadura Militar. À medida que o país foi percorrendo o caminho para a democracia, Lula e outros líderes planearam novas formas de atuação. Aldo Rebelo, que entretanto fora eleito secretário-geral da União Nacional dos Estudantes, recebeu um convite para fazer uma viagem política onde iria encontrar-se com o líder da Organização de Libertação da Palestina, Yasser Arafat.
A viagem foi um acontecimento importante na vida de Aldo e dos amigos. O problema é que iria sair do Rio com temperaturas superiores a 35º e aterrar no meio do inverno do hemisfério Norte; e ele era um jovem com poucos recursos financeiros que vivia num país tropical! Precisava de alguém que lhe emprestasse roupa de inverno, camisolas de lã, anoraks, aquelas coisas que nunca usaria no Rio de Janeiro. Inês foi ao armário do pai, e emprestou-lhe às escondidas um casaco Lacoste que era um dos preferidos de Rui Patrício.
Não sabemos se Aldo Rebelo acredita em sinais... se acreditar deve achar que o casaco do pai da sua amiga Inês foi um bom presságio para a sua carreira política: muitos anos depois e já noutro século, viria a ser ministro de Lula e Dilma, tutelando as pastas da Coordenação Política, Ciência e Tecnologia, Desporto e Defesa; também foi presidente da Câmara de Deputados.
A forma como Rui Patrício descobriu que a filha surripiou as suas roupas às escondidas, foi contada por Inês quando a autora deste texto a entrevistou para o livro “Marcello Caetano – O Homem que Perdeu a Fé”: “Esse casaco Lacoste tinha um monograma do meu pai. De vez em quando ele perguntava pelo casaco; quando o Aldo voltou, pedi‑lhe que o devolvesse … mas ele já não o tinha porque entrou no ritual de trocas praticado pelos palestinianos, e parece que terá dado o casaco a Arafat”. O ex-ministro do Estado Novo português não gostou nada de ver uma foto que foi publicada num jornal de um partido da esquerda brasileira... onde Aldo aparecia com um casaco Lacoste bordado com o monograma RP, ao lado de Arafat.
Depois do 25 de Abril de 1974 houve um grupo de portugueses que rumou ao Brasil em busca de novas oportunidades; esse grupo não era homogéneo e partiu por motivos diferentes. Houve os que abandonaram Portugal por estarem simplesmente assustados com a mudança de regime, outros por terem sido saneados e precisarem de encontrar emprego noutras paragens, outros por acharem que corriam o risco de ser presos se ficassem em Portugal.
Alguns – como Rui Patrício – conseguiram posicionar-se rapidamente no mercado de trabalho. Mas houve outros que tiveram mais dificuldade em encontrar trabalho, recorrendo ‘nos entretantos’ às discretas transações que se faziam no restaurante Antiquarius, propriedade do português Carlos Perico, que antes da Revolução era concessionário da Pousada de Elvas. Para além da boa comida, o Antiquarius [que ainda existe] era um sítio onde os portugueses deixavam joias, mobiliário e peças de arte para vender à consignação.
O filho do fundador da Universidade onde Marcello Caetano deu aulas no Rio contou à autora deste texto no livro “Marcello Caetano – O Homem que Perdeu a Fé" que comprou lá "uma imagem de Santo António do século XVII e uns candelabros muito bonitos”.
Dois grupos que nem na praia se misturavam
Entre a venda de peças antigas e joias de família para fazer face às despesas imediatas, rapidamente surgiram tensões entre os portugueses. Inês recorda que existiam “dois grupos totalmente distintos que nem na praia se misturavam. Um deles, muito conservador, de que fazia parte o meu pai; o outro, mais ligado à burguesia do capital, que tinha pessoas como os Espírito Santo e outras; este último grupo fazia praia em São Conrado e o primeiro em Ipanema”.
Com o passar do tempo as diferenças foram‑se atenuando, e muitas dessas pessoas regressaram a Portugal. “E as que ficaram no Brasil passaram a viver num país onde deixou de ser culpa ter ou ganhar dinheiro, onde tudo era mais livre, despreocupado... e gostaram de aí viver. Foi o que aconteceu ao meu pai, que continua cá”, apesar de ir fazer 84 anos a 17 de agosto.
Na vida carioca dessa época, a história da família Patrício e dos outros exilados acabou por ter um certo glamour para uma camada de brasileiros que não estava habituada a conviver com portugueses ricos ou da classe média, como os que aterraram no Rio de Janeiro depois do 25 de Abril, e sobretudo depois do 11 de Março de 1975.
Boa parte dos cariocas [nome porque são conhecidos os habitantes do Rio de Janeiro] da classe médida e alta gostam de morar na Zona Sul, e de preferência em prédios com alguma segurança. Esta preferência pode fazê-los perder o gosto de conhecer e descobrir a cidade e parte do estado do Rio de Janeiro, onde moram mais de 16 milhões de pessoas.
No início deste século, quando Benedita da Silva era governadora do estado do Rio de Janeiro, Inês decidiu cruzar a linha invisível que muitos cariocas nunca quiseram atravessar. Trocou a rotina quotidiana que se dividia entre o apartamento no bairro da Gávea e as aulas na UFF (Universidade Federal Fluminense) em Niterói (cidade que fica do lado oposto da baía de Guanabara... ou seja a outra banda), pelo sonho de construir uma Escola de Governo na Baixada Fluminense.
Apoiante do PT, acredita mais no ativismo social do que na militância partidária, e o projeto da Escola de Governo era uma forma de contribuir para a formação certificada das pessoas que viviam na Baixada, independentemente de terem ou não habilitações literárias convencionais, dando-lhes a possibilidade de frequentarem aulas que iriam ser dadas por professores universitários.
Uma universidade feita de baixo para cima
Inês acreditou no seu sonho e mudou-se para a parte do estado do RJ que os turistas nunca visitam. A zona operária e industrial, a área onde moram muitos dos trabalhadores mais desfavorecidos e desprotegidos, que gastam horas infinitas nas deslocações para o trabalho, optando alguns, sobretudo as empregadas domésticas, por dormir no local de trabalho para contornar o custo diário e o tempo de deslocação.
“Naquela época os municípios da Baixada tinham o Indíce de Desenvolvimento mais baixo do estado do Rio de Janeiro e 90% dos pais de família estavam no desemprego. A Baixada é o berço do samba mas era também um zona com muita violência”.
A sua amiga e colega Ângela Ganem “foi junto. O projeto é da Inês, foi ela que concebeu o projeto pedagógico ligado à UFF onde nós estávamos. Desafiou-me e eu aceitei. As comunidades locais, São João Meriti e Nova Iguaçu, abrigaram-nos, facilitaram espaço, e nós fomos contactando professores universitários que faziam palestras/aulas de graça. Nós queríamos criar um instrumento de desenvolvimento da Baixada com os atores da Baixada, aberto à frequência de todos, da dona de casa aos políticos locais”.
“A gente cumpriu um papel na Baixada”, diz Ângela. A Escola de Governo que Inês projetou acabou por evoluir para Universidade pública, mas foi uma “Universidade feita de baixo para cima, ao contrário do que acontece sempre”, explica Ângela.
Lindberg Farias que era deputado federal e viria a ser eleito Prefeito de Nova Iguaçu em 2005 apostou no projeto e mobilizou uma verba de “900 mil reais para aquele projeto”, que acabou por dar origem ao atual Instituto Multidisciplinar da Baixada Fluminense.
Inês nunca resolveu muito bem esta “terceira mudança” da sua vida: “A primeira foi a chegada ao Brasil, a segunda o casamento, a terceira a escola na Baixada; cheguei a morar lá durante a semana”, conta. Na opinião de Ângela, o projeto marcou a diferença: “A Inês queria que fosse criado um consórcio de Universidades públicas” que sustentaria o projeto. “Não conseguiu porque o consórcio era uma nova personalidade jurídica e, na minha opinião, o Lula queria mostrar serviço, ele estava a investir na criação de extensões das Universidades, e era preciso andar depressa. Mas o Instituto Multidisciplinar da Baixada Fluminense existe e é uma boa escola. Não ficou ancorado no consórcio, não ficou ligado à UFF, mas funciona ligado à Universidade Rural que já tinha um outro pólo noutro município”.
Inês é bisneta do poeta, escritor e diplomata António Patrício, autor do poema “De que me rio eu?”. Num dos versos desse poema, António Patrício, que morreu em Macau três meses depois de ter sido nomeado embaixador de Portugal em Pequim - a 4 de junho de 1930 - escreveu: “Eu rio porque tenho medo”. Fortemente influenciado pelo Simbolismo, António Patrício licenciou-se em Medicina pela Universidade do Porto, mas nunca exerceu. “Oceano”, o seu primeiro livro, foi publicado em 1905. Foi colaborador das revistas “Águia” e “Contemporânea”.
A feminista e ativista social Mariana Patrício – filha de Inês e do seu primeiro marido Luís Fernandes – é brasileira de cidadania e coração; mas batizou o filho de António para homenagear o trisavô e o lado português da sua família materna.
Com 58 anos acabados de fazer, a mãe de Mariana está zangada com o momento político atual e continua a dizer que não vai assistir aos Jogos Olímpicos: “Os Jogos deviam ser um momento de afirmação do Brasil e o Temer estragou a festa”.
A demissão de Dilma foi um golpe tão grande para muitos simpatizantes do PT, que Inês aproveitou as olímpiadas para protestar e mudar a foto de capa na sua página no Facebook... transformando-a num momento anti-Temer.
No Brasil, cada um tem a sua definição de Jogos Olímpicos. Estes 16 dias que deveriam ser uma imensa festa para o PT, partido que quando esteve no poder preparou o caminho para ela, vai ser vivido como um momento estranho: “É difícil ficar torcendo contra um grande projeto do Brasil”, diz Angela Ganem.
“Estou muito dividida, há muita crítica para fazer ao trabalho” preparatório para receber os atletas e visitantes, muita crítica ao que foi feito a nível de infraestruturas “no saneamento, na baía de Guanabara, mesmo nos transportes. Eu vou acompanhar as provas mas não vou gastar dinheiro para ir assistir. Está tudo muito caro, o Rio de Janeiro está absurdamente caro”.
Inês talvez acabe por espreitar a transmissão dos Jogos Olímpicos. Até porque em todas as “passeatas” [manifestações, deste lado do Atlântico] se lembra sempre do que lhe dizia o banheiro Sabino que a ensinou a nadar no mar bravo da Praia das Maçãs: “Pegava-nos ao colo e atirava-nos ao mar no meio da rebentação. E dizia-me sempre – nunca fuja de uma onda! Vá ao encontro dela”.
Os Jogos são a onda que tomou conta do Brasil nestes dias... e ela tem de torcer por dois países: aquele onde nasceu, que lhe garante o passaporte como documento de identificação porque nunca quis pedir a cidadania brasileira, e aquele onde vive, briga, luta, e nasceram a sua filha, neto, primeiro e segundo marido e boa parte dos amigos.
Os exílios costumam ser cinzentos mas o de Inês e do pai foi curto e poderia ser pintado de azul e verde: ainda hoje vivem no Brasil, mas fazem-no porque quiseram ficar. A mãe regressou a Portugal depois do divórcio dos pais, e parte dos irmãos seguiu-a.
Mas Inês encontrou no Rio de Janeiro a mesma liberdade que tinha sentido em Lisboa no ano que se seguiu à Revolução, quando tudo corria mal na vida do pai: “Estou muito agradecida aos capitães de Abril por me terem aberto o mundo”.
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