"Merkel e Schauble agiram como um verdadeiro Muro de Berlim", acusa Lucrezia Reichlin, professora na London Business School

Jornalista
Entre 2012 e 2014, o Banco Central Europeu (BCE) revelou “demasiada hesitação”, mas para o seu presidente Mario Draghi poder ter ido, então, mais longe teria de ter apoio político, e na Alemanha esbarrava com “um verdadeiro Muro de Berlim” nessa época, acusa a italiana especialista em política monetária, que foi a primeira mulher a liderar o departamento de investigação do BCE entre 2005 e 2008. Recorde-se que, em julho de 2012, em Londres, o presidente do BCE proferiu a célebre frase “custe o que custar” (whatever it takes) não deixaria cair o euro, a que logo acrescentou “acreditem, será suficiente”.
Nascida em Roma como Mario Draghi, Lucrezia Reichlin é professora de economia desde 2008 na London Business School e foi fundadora do Now-Casting.com, pioneiro em métodos de previsão macroeconómica. A entrevista exclusiva publicada na edição impressa do Expresso é publicada aqui na sua versão integral.
Mario Draghi poderia ter feito mais cedo a declaração de proteção do euro ‘custe o que custar’?
Acho que não. Ele precisava de apoio político. E, no verão de 2012, surgiu um novo consenso envolvendo o apoio a um amplo conjunto de reformas, incluindo a união bancária. Sem esse consenso, Draghi não teria sido credível.
Ao programa de compra de dívida SMP (Securities Markets Programme) lançado dois anos antes pelo seu antecessor Jean-Claude Trichet faltava essa credibilidade?
O programa SMP não funcionou exatamente porque não tinha essa credibilidade. Em 2010, ao contrário de 2012, não houve apoio político a um programa de compras definitivas por parte do BCE.
Por que razão Draghi escolheu Londres para aquela declaração vital e não um conselho do BCE em Frankfurt, como seria normal?
Londres é o centro do mercado financeiro e Draghi teve de convencer o mercado. Embora o programa OMT [que seria lançado em setembro] tenha sido preparado a nível político, um simples anúncio do Conselho do BCE não teria sido tão eficaz como as palavras expressas po Draghi no discurso: “custe o que custar” e “acreditem, será suficiente”.
Um simples anúncio do Conselho do BCE não teria sido tão eficaz como as palavras expressas por Draghi no discurso: “custe o que custar” e “acreditem, será suficiente”
As compras de dívida através do SMP deveriam ter continuado mesmo depois do anúncio do novo programa OMT (Outright Monetary Transactions, Transacções Monetárias Definitivas) que, aliás, nunca foi usado?
O SMP tinha sido mal desenhado devido a restrições políticas. Esse programa incluía o estatuto de dívida sénior para o BCE [com prioridade de reembolso do crédito no caso de incumprimento da dívida pelo devedor] e também não era aberto. Por isso, faltava-lhe credibilidade desde o início. O anúncio do OMT foi suficiente para resolver o problema da estabilidade financeira na altura. Mas o BCE também enfrentava um problema de política monetária.
O que é que isso implicava?
O BCE tinha, também, de estimular a economia e o mecanismo monetário adequado era o QE (quantitative easing), a flexibilização quantitativa [uma forma de injetar dinheiro na economia através da compra de dívida pelo banco central] para o qual não havia consenso em 2012.
Draghi deveria ter forçado o BCE a ir muito mais longe?
O que deveria ter sido feito era uma flexibilização quantitativa standard. O paradoxo é que, desde 2012, o balanço do Eurosistema começou a diminuir e os riscos de deflação materializaram-se. A comparação com a Reserva Federal norte-americana (Fed) é esclarecedora. [A Fed iniciou o QE em novembro de 2008, durante a crise financeira.]
A primeira fase do QE só avançou no final de 2014. E ainda não envolvia a compra de dívida pública, o que só começou em 2015. O BCE focou-se em 2012 e 2013 em baixar as taxas. Isso foi insuficiente?
Acho que o que mudou efetivamente o jogo foi o QE a partir do final de 2014. A meu ver, o BCE demorou a agir. Reduzir a taxa de refinanciamento para zero era irrelevante, pois o que importa é a taxa de remuneração de depósitos, que se tornou essencialmente um sistema mínimo. A taxa de mercado é a taxa de depósito que é o mínimo. O que atrasou a adoção do QE poi a oposição dos ‘falcões’.
Acho que o que mudou efetivamente o jogo foi o QE a partir do final de 2014. A meu ver, o BCE demorou a agir (…) O que atrasou a adoção do QE poi a oposição dos ‘falcões’.
Pode dizer-se que politicamente a pressão da chanceler alemã e do seu ministro das Finanças foram determinantes nesses atrasos do BCE?
Merkel e Schauble agiram como um verdadeiro Muro de Berlim.
Qual é a avaliação global que faz do mandato de Draghi?
Globalmente, muito bom. Ele tinha uma reputação forte que ajudou nos mercados financeiros e tomou medidas decisivas em momentos cruciais. Pode argumentar-se que houve demasiada hesitação entre 2012 e 2014, mas faltou apoio político e o conselho do BCE ficou dividido. Não importa quão independente seja o banco central, o apoio das autoridades orçamentais é fundamental para a credibilidade. Na área do euro, este é um processo complexo que envolve muitos países.
Christine Lagarde tem estado à altura do legado de Draghi?
É, ainda, muito cedo para o dizer. Há muitas coisas positivas. Ela dirige o BCE de uma forma mais consensual do que Draghi e, embora tenha cometido alguns erros de comunicação, passou brilhantemente no teste mais difícil, que foi a covid. Estou menos convencida na forma como ela tem lidado com a inflação.
Na base de considerações puramente económicas, penso que a postura de Christine Lagarde é excessivamente de ‘falcão’
Em que sentido?
Na base de considerações puramente económicas, penso que a postura dela é excessivamente de ‘falcão’. Mas compreendo que existe a preocupação política de manter o grupo unido face aos riscos de inflação. O BCE tem um mandato legal de inflação de 2% e qualquer perceção de desvio desse valor, mesmo que não tenha fundamento, pode causar muita divisão e provocar danos colaterais.
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