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Em Leiria, a mercearia do sr. Ferreira vende pandeiretas e acordeões, atum, azeite, vinho e cavaquinhos

Em Leiria, a mercearia do sr. Ferreira vende pandeiretas e acordeões, atum, azeite, vinho e cavaquinhos
NUNO BOTELHO

É uma mercearia? É uma garrafeira? É uma loja de instrumentos musicais? É um espaço que Manuel Ferreira foi construindo ao longo dos seus 86 anos de vida, no centro de Leiria. Já vendeu muito vinho aos emigrantes, agora dá resposta à moda da “fisioterapia musical”

Em Leiria, a mercearia do sr. Ferreira vende pandeiretas e acordeões, atum, azeite, vinho e cavaquinhos

Marina Almeida

Jornalista

Em Leiria, a mercearia do sr. Ferreira vende pandeiretas e acordeões, atum, azeite, vinho e cavaquinhos

Nuno Botelho

Fotojornalista

Está sentado no fundo da mercearia, um espaço repleto de pacotes, garrafas, caixas, latas e instrumentos musicais, num jogo de cores, luz e sombras. O sr. Ferreira, como é conhecido na cidade, passa grande parte dos dias neste lugar que inventou casando a paixão pela música e a astúcia comercial. Se há cinco, seis décadas o que vendia em abundância era o vinho, hoje são os instrumentos musicais, em especial os cavaquinhos, que mais saem da sua loja.

“A fisioterapia musical está muito em voga. Ainda há pouco tempo fui ao hospital e vi que estava lá um cartaz a dizer isso, mais ou menos isso. Então as pessoas compram cavaquinhos, que é um instrumento facílimo de tocar. As pessoas de 60, 70, 80 anos tocam. E aqui há dias vendi um acordeão a um senhor de 90 e tal anos”, conta.

Não tardaria a pegar num cavaquinho e a passar os dedos pelas cordas. “Toda a gente sabe tocar isto. As pessoas entretêm-se, e ainda bebem um café”, diz com um sorriso. Está no meio da mercearia, rodeado de toda a sorte de produtos alimentares nas estantes que se erguem até ao teto, intercalados com acordeões, pandeiretas ou tambores. As pessoas vêm aqui e levam um acordeão debaixo de um braço e uma lata de feijão debaixo do outro? Ri-se. “É isso. Levam mais garrafas. Levam um acordeão num braço e uma garrafa de vinho no outro”. Boa disposição não lhe falta.

Manuel Ferreira tocava em bailes nas coletividades da região. Matinés, Carnavais, tudo. Na altura já tinha a garrafeira que fazia bom negócio com os emigrantes que iam à terra de férias ou para casar e levavam às caixas de vinho para França. “As coisas lá eram muito mais caras, eram precisos uma data de escudos para comprar um franco e eles compravam cá o vinho. Chegámos a vender aí cem caixas de vinho do Porto a um emigrante. A maior parte já partiram, já estão à minha espera... Agora vêm os filhos cá comprar, mas é uma minoria. Vendemos há dias para Tours, duas ou três caixas, agora é uma ou duas garrafas, não tem expressão”.

Daí a pouco pegaria num acordeão, enchendo a pequena mercearia de música. É a sua paixão. Em jovem, era um bon vivant e ia ver espetáculos a Lisboa. E foi numa dessas viagens que deu com o Pão de Açúcar, o primeiro grande supermercado que abriu em Portugal. Percebeu o que se ia passar e tomou medidas: “Pensei no que vai ser daqueles comerciantes de Lisboa e pensei em Leiria. Em 1972 concorri à Segurança Social, fui logo chamado. Continuei a aguentar isto, estava aqui a minha esposa, e quando chegava do serviço vinha para aqui trabalhar”.

Para além dos vinhos, tinha bons clientes nas redondezas. “Da parte velha de Leiria, as pessoas todas que existiam quando vim para aqui desapareceu tudo. Quando vim para aqui nunca pensei ter tanta clientela!” Nesta altura, a loja de instrumentos musicais e a mercearia eram espaços diferentes. Só mais tarde, se fundiram nesta curiosa mistura. “Vou-me entretendo agora”, diz. Vende instrumentos musicais a músicos locais, aos estudantes do Politécnico e aos seguidores da tal fisioterapia musical. Manuel Ferreira ainda toca, sem ser na mercearia. Para além do acordeão e do cavaquinho, toca órgão – “ainda ontem fui fazer um ensaio para tocar numa missa”.

Volta ao acordeão, no meio da mercearia como no palco, com a luz da rua a entrar e a iluminar-lhe o rosto e a vida. Não precisa de mais para ser feliz.

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