Manuel Cargaleiro encontrava Pablo Picasso no talho em Paris. O seu museu em Castelo Branco tem várias peças do artista
José Fernandes
O Museu Cargaleiro é um espaço onde não se mostra apenas a obra do mestre português, irrequieto artista em várias disciplinas. Ali está a sua imensa coleção de arte, com mais de 300 artistas representados, entre portugueses e estrangeiros. Picasso é um deles. Mas há muitos mais. E uma coleção de cerâmica, com mais de dez mil peças, mesmo a pedir um (novo) museu.
Marina Almeida
Entramos no museu pela porta. A porta que Manuel Cargaleiro encontrou durante as obras do museu albicastrense e que pintou em homenagem ao concelho onde nasceu em 1927. Chamou-lhe A porta da vizinha que eu nunca conheci. “Eu fiz a recuperação do espaço e usei as pedras das casas que havia aqui” conta João Teixeira, arquiteto e diretor executivo da Fundação Manuel Cargaleiro. “Um dia o mestre apareceu com uma porta e fez a porta simbólica de entrada do museu, uma homenagem a Castelo Branco com as 25 freguesias intercaladas com as cores, as formas geométricas, as composições florais que caracterizam a obra”, diz José Vaz. “Mais tarde apareceu uma senhora com a chave da porta que era da tia ou da avó. Está guardada nas reservas”, conta o arquiteto.
Não é preciso chave. São mais que muitas as histórias que João Teixeira e José Vaz contam. Ouviram-nas contadas pelo mestre, nas muitas visitas ao museu que é a casa de uma coleção de cerca de 15 mil peças, entre obras do artista e a sua coleção privadaque doou à fundação. Aqui encontram-se trabalhos de mais de 300 artistas, nacionais e estrangeiros, entre cerâmica, pintura, escultura, desenho e têxteis.
“Esta vertente de colecionador é fruto do contacto com outros artistas. É muito comum fazerem trocas”, conta José Vaz, funcionário do museu desde o início, em 2005. “E há trocas que nem lhe digo nem lhe conto. Há uma peça em madeira que é de um artista com quem o mestre vivia em Paris e queria fazer uma exposição em Berlim e não tinha dinheiro para a viagem. Tinha pintado o tampo da mesa onde eles comiam em casa. O mestre deu-lhe o dinheiro para o comboio, ficou com o tampo da mesa”, diz o arquiteto. O artista era René Bertholo, com quem Cargaleiro partilhava casa. A peça foi comprada nos anos 60 e está na reserva do museu.
“Para o mestre, cada a peça tem uma história. E ele tem uma memória que nos consegue sempre surpreender”, aponta José Vaz.
João Teixeira diretor executivo da Fundação Manuel Cargaleiro,
José Fernandes
O tampo da mesa que René Bertholo pintou na mesa onde comiam - óleo obre madeira, 1960s
Fundação Manuel Cargaleiro
Coleção avaliada em 13 milhões de euros
Se João e José contam histórias a cada passo, nem se imagina se fosse com Cargaleiro. Paramos junto à vitrine que guarda três peças de cerâmica de Picasso, um dos destaques da coleção da Fundação Manuel Cargaleiro. Nos topos, dois pratos — Corrida (1953) e Bouquet à la pomme (1956) — , no centro uma travessa, Goat’s head in a profile (1952). Todas as peças produzidas no atelier do artista espanhol em Vallauris, no sul de França.
“O mestre contava que viviam os dois mais ou menos na mesma zona em Paris e que se encontravam às vezes no talho”, conta José Vaz. No entanto, estas peças (e outras, que estão nas reservas) não terão sido compradas diretamente a Pablo Picasso, até porque são múltiplos.
Encontrar três Picassos num museu na Beira Baixa é algo que surpreende os visitantes. Muitos chegam mesmo a verbalizar que parecem que estão numa grande exposição numa capital europeia e não no interior do país. João Teixeira logo se lembra de um episódio: “Um casal de Lisboa, ela era portuguesa e ele era inglês, tinham vindo passar o fim de semana a Castelo Branco para visitar o museu. Quando chegaram, no hotel, disseram-lhes que a Maria João Pires ia fazer um concerto em Belgais e eles ainda conseguiram arranjar bilhetes, mas não sabiam bem ao que iam. Quando chegaram ao museu, estava cá o mestre e fez-lhes uma visita guiada. Eles ficaram encantados. À noite, eu e a minha mulher fomos ao concerto e eles estavam lá. Vieram ter connosco e disseram, ‘viemos ver o museu Cargaleiro, encontrámos o mestre Cargaleiro, estamos em casa da Maria João Pires a assistir a um concerto. Em nenhuma parte do mundo isto acontece”.
Picasso é um dos muitos artistas representados na coleção, com um valor estimado de 13 milhões de euros. “Da Vieira da Silva temos o bloco onde ela desenhava quando estava ao telefone…”. Arpad Szénes, Almada Negreiros ou José Escada, Man Ray, Miró ou Dubuffet, são alguns dos nomes. Nem todos estão expostos, encontrando-se nas reservas, devidamente acondicionados. Nas reservas de pintura estão também cerca de dois mil desenhos do mestre, dos quais centena e meia podem atualmente ser vistos na exposição “Uma Vida Desenhada”, com curadoria de João Pinharanda. “Muitos são esboços de obras, é o lado intimista do artista”, apresenta José Vaz.
A obra de Manuel Cargaleiro, da pintura à cerâmica, passando pelo desenho, cruza-se com a de outros artistas no museu de Castelo Branco
José Fernandes
Um, dois, três museus?
Deixamos o chamado edifício “novo”, um projeto de João Teixeira, e passamos para o segundo polo, um solar do século XVIII, onde funciona a bilheteira, a loja, e se apresenta parte da coleção de cerâmica, com destaque para a cerâmica ratinha. Esta loiça, de fabrico grosseiro, era usada pelos trabalhadores rurais sazonais beirões, conhecidos por ratinhos, que na época da ceifa migravam para o Alentejo para trabalhar (e terão sido os alentejanos a inventar a designação). São dezenas de peças. É uma coleção única, asseveram. Mas não é a única.
Há um terceiro edifício na cidade que alberga neste momento as reservas de cerâmica. São cerca de dez mil peças que estão a acabar de ser inventariadas. Manuel Cargaleiro fez questão de as doar à Fundação e tem o sonho de ali ver nascer um museu da cerâmica. Em maio foi feita a escritura de doação de 1800 peças, avaliadas em um milhão e 200 mil euros.
São caixas e caixas com azulejos, entre muitas outras peças, muitas da sua autoria. Catarina Mateus conhece-as bem. Foi uma das pessoas que fez o inventário da coleção de cerâmica. Licenciada em História de Arte com mestrado em Arte e Património, é natural da cidade e tem o privilégio de ali trabalhar. A tarefa é gigantesca. “Brincamos a dizer que há aqui azulejos que davam para revestir todas as paredes de Castelo Branco”. João Tavares diz que podiam fazer muitos museus com a coleção da fundação, mas a prioridade é o Museu da Cerâmica. O edifício existe, falta o projeto expositivo.
A coleção de cerâmica ratinha
José Fernandes
São mais de dez mil peças na reserva de cerâmica, a aguardar um novo espaço expositivo
José Fernandes
Por enquanto são dois os polos do museu Cargaleiro. E a mais recente peça a chegar ao Museu Cargaleiro é o painel Mensagem, feito em coautoria com Vhils. Conheceram-se há pouco tempo, mas a ligação foi logo intensa. “É quase uma relação de avô e de neto”, diz José. É um painel feito de vários pedaços de madeira, com um olho no centro e quadrículas coloridas em redor.
Foi, também, feito a partir de portas velhas.
Mensagem, feita em coautoria com Vhils, é a mais recente obra da coleção
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