Diário da Peste,
28 de abril
É preciso aplaudir os animais, diário de ontem.
Um agradecimento público e privado.
Têm sido corajosos.
Aplaudo os meus animais e eles olham para mim: o que quer este parvo?
Boris Johnson interrompeu a reunião com o ministro das Finanças para fazer um minuto de silêncio.
Interromper a economia com 1 minuto de silêncio.
Ritual que podia ser repetido a cada meio dia.
A meio da economia: um minuto de silêncio.
“Síndrome relacionada com coronavírus identificada em crianças”.
E número de médicos, enfermeiros e auxiliares mortos.
10% dos que estavam a tentar salvar, kaput súbito: vírus, sintoma, febre - por vezes rapidamente despedida possível e morte.
No México, alguns médicos e enfermeiros são insultados.
Despejam sobre eles água para os limpar.
O médico visto como doente.
A doença apodera-se do doente, do médico, dos instrumentos de medicina, do hospital, do bairro, da cidade e do país.
E da tua cabeça.
O estatuto de observador desaparece.
Doente ou possível doente. Não há terceiro excluído.
Palmas, silêncio e baldes de água.
Não há espaço nem para vivos, nem para mortos, dizia há dias a presidente da cidade de Guayaquil, Cynthia Viteri.
Referia-se aos hospitais e cemitérios da cidade.
A cidade está a abrir dois novos espaços para recolher quem já não anda nem respira.
Carrego um balde de água e o peso da água fascina.
Não é chumbo, nem pedra nem areia.
Parece um peso benigno; peso com bom coração.
Mas a Física não tem torções éticas ou compaixão em bicos de pés para não acordar o sono dos justos.
Peso é peso, mas gosto quando o peso balança.
“Novo estudo em Wuhan admite vírus em partículas de ar”.
Mas não conclui se o ar pode provocar infeções.
Em Espanha meninos na rua, autorizados por decreto a sair de casa.
Parecem estar a ver pela primeira vez o vento.
Deixa de ser coisa aérea e invisível para ser recebido com festa.
Número de mortos em África sobe e fala-se de um possível “baby boom”.
Instala-se uma monarquia antiga nos tempos de emergência.
O primeiro ministro fica rei temporário de reino nenhum.
Em Espanha, os meninos encontram o skate - e toda a velocidade e desequilíbrio são recebidos por pés quietos há tempo demais.
A polícia avança a cavalo e com máscaras, em algumas cidades italianas.
Há aldeias sem pessoas e sem ninguém na rua, mas já antes da peste não tinham pessoas nem ninguém na rua.
“Sem vacina, “será difícil” haver Jogos Olímpicos em 2021.”
British Airways prevê suprimir mais de dez mil postos de trabalho.
Aulas presenciais em Espanha só em setembro.
Pelo mundo, isto. Em baixo e em cima.
Muitos recusam-se a usar máscara e são olhados de lado.
Muitos usam máscara e são olhados de lado.
O olhar de lado para um outro humano chegou com força ao século, e não vai sair tão cedo.
Uma nova espécie humana que olha mais de lado que de frente.
“Reuniões com mais de 10 pessoas proibidas em França.”
Antes, quando os carros paravam nos semáforos, vendiam-se doces e água nas ruas da América latina.
Agora vendem-se máscaras nos semáforos, mas em alguns sítios está verde e nenhum carro avança.
E assim o negócio não pode ser bom.
---------------------
Índice
Diário da Peste. Os corredores dos aeroportos parecem ter aumentado de tamanho
Diário da Peste. Sairá à rua uma nova espécie humana
Diário da Peste. Nenhuma disciplina é mais necessária: acordar sempre à mesma hora
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt