Opinião

Diário da Peste. Os corredores dos aeroportos parecem ter aumentado de tamanho

Diário da Peste,
27 de abril

Os corredores dos aeroportos parecem ter aumentado de tamanho.
Estão vazios e brilham. Estão limpíssimos.
A limpeza aumenta o espaço, aumenta o metro quadrado.
O marido e a filha não querem abrir a porta.
Ela é enfermeira num lar e está infectada.
A chave não entra.
A campainha toca e de dentro, marido e filha, dizem: não abrimos.
Ela fica do lado de fora da porta.
Volta ao trabalho e dorme no lar.
A minha pastora de berna, a Roma, está quase a ficar boa da ferida na pata.
Mas é preciso tempo.
Alguns idosos vão à janela e despedem-se do espaço vazio como se o espaço vazio fosse um familiar próximo.
No Reino Unido, a maratona de Londres foi adiada e uma maratonista corre, à volta da casa, a distância exacta da prova.
São muitas voltas a casa.
Podes correr a distância de uma maratona em redor de uma mesa ou até de um prato.
É preciso ser disciplinado como se a disciplina fosse a alucinação de um louco.
Os animais do zoológico de Nova Iorque parecem não ligar à peste. Mas nem todos os animais são iguais.
Há uns que estão deprimidos, dizem os tratadores.
Faltam-lhes os aplausos humanos.
Um homem de 83 anos diz: “vivo sozinho e por causa do vírus evito sair. Estou quase sempre sentado à frente da televisão. Mal me consigo levantar. Quando saio à rua é uma tristeza, não há ninguém.”
Por todo o lado, a polícia vigia as estradas.
Pergunta: para onde vai? Qual o seu objectivo?
A Europa está mudada.
Em pouco tempo o medo põe o humano a aceitar a pergunta: para onde vai?
Temos todos de novo cinco anos.
E até alguém com noventa anos está na rua como se perdido do pai.
Pode ser mais tarde ou mais cedo.
Mas toda a gente se perde do pai.
Pelo menos uma vez.
Os anúncios anunciam um futuro qualquer daqui a duas semanas ou um mês, e imagino uma multidão de humanos a sair à rua para aplaudir os animais.
Os gatos, os cães, os animais de rua.
E depois abalroando o zoológico para aplaudir os animais selvagens.
É preciso aplaudir os animais, penso.
E sei que isto é forte mas é difícil explicar porquê.
Como se os animais se tivessem portado bem durante estas semanas de sobressalto humano.
Como se tivessem sido corajosos.
Ou compreensivos.

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