Opinião

Diário da Peste. Aqui está um pouco difícil 

Diário da Peste,
15 de Abril

Aqui está um pouco difícil, escreve uma amiga. Anda-se disperso, entre os acontecimentos de fora, as panelas, a escrita, as obras do vizinho e a maternidade. O fascínio fica atabalhoado. Por causa disso achei melhor não rapar as sobrancelhas. Quero muito andar de bicicleta, mas até para isso é preciso coragem.
A França regista mais 1.438 vítimas mortais e os negros americanos têm medo de usar máscara porque a polícia os pode confundir com assaltantes, e disparar.
Relatório editorial de recomendações a jornalistas, Brasil (excerto):
“Concentre-se em transmitir informações, não análises.
Cuidado com os títulos que dá às notícias.
Lembre-se: nem todos os números são exactos.
Converse com o maior número de pessoas.
Evite tons racistas.
Não negligencie reportagens que não são comoventes.”
Hoje sol e depois chuva e depois sol e depois chuva e depois sol.
É difícil saber o que vem antes ou depois.
Visto uma camisa decente para ver as notícias.
Uma tabela com números, uns vivos, outros mortos.
Outros quase no campo dos ressuscitados.
A estatística é muitas vezes o modelo do que não é comovente.
Mas nestes dias não.
Cuidado com os títulos que dá às notícias.
E ainda: não negligenciar o que não é comovente.
“Hotéis de luxo partilham receitas para preparar em casa.”
“Do hotel Dar El Dadaka, em Marrocos, pode aprender-se a preparar uma salada de laranja com sementes de funcho.”
Estamos fartos de procedimentos, dizem-me.
Seis passos para pôr a máscara.
Cinco para manter a forma como se a forma fosse a forma de um jarro precioso que é necessário não partir.
E quando se regressa a casa depois de uma saída: sete passos até lavar as mãos.
E lavar as mãos também tem cinco, seis ou sete passos.
E se falhas um, morres ou matas.
Nove passos ainda para a preparação em casa de “cataplana de peixe e marisco do chef…”
1.Corte as cebolas e os pimentões em Juliana e fatie os dentes de alho.
2. Na cataplana, refogue o presunto no azeite, adicione a cebola, o alho e os pimentos, a malagueta e ....”
São nove passos, antes do 5º já estou a chorar, murmura alguém.
Na Colômbia, “as modelos de webcam eróticas reinventaram o seu negócio face ao boom de procura.”
Agora são cada vez mais psicólogas, dizem.
Rebecca de Medellin diz que tem sido muito mais solicitada nestes dias.
Como se fosse um milagre.
Despe-se “frente à câmara para internautas dos Estados Unidos, França e Inglaterra, três países fortemente afectados por esta epidemia.”
Num vídeo de outro país, o pai toca mal guitarra para o bebé ficar contente.
Quanto pior toca mais o bebé se ri.
Ainda a oração do mártir Tomás.
Além de pedir bom humor, digestão e algo para digerir, reza:
“não permitais que essa coisa que se chama o “eu”, e que sempre tende a dilatar-se, me preocupe demasiado. “
Recordo esta notícia.
Em Vigo, um casal de velhos com alzheimer.
Ele alemão, ela espanhola.
Ele esqueceu o espanhol.
E agora não se entendem.
Só ficaram com a primeira das línguas.
Um fala, o outro não percebe.
Mas continuam juntos.
Alguma coisa devem perceber.
Ele à noite toca à janela uma harmónica enquanto das outras janelas, à hora marcada, as pessoas aplaudem os médicos do país.
Ele pensa que as palmas são para ele.
Ela, não sei o que entende.
Três notícias e um anúncio mais ou menos no mesmo espaço visual:
“O efeito dominó: a história da enfermeira, do marido e dos seus 11 filhos, todos com coronovírus.”
FMI perdoa seis meses de dívida a 25 dos países mais pobres.
E: Presidente ucraniano oferece 1 milhão de dólares a quem desenvolver uma vacina.
E anda um anúncio a um novo carro. Faz não sei quantos segundos aos cem.
E logo depois, duas mensagens seguidas da mesma pessoa:
[15/04, 19:03] Vi agora na net, no programa do John Oliver, que os trabalhadores da Amazon são obrigados a continuar a trabalhar sem proteção nenhuma e que os bens essenciais estão todos esgotados. Sentem-se revoltados por terem de trabalhar para enviar dildos e coisas desse género.
[15/04, 19:04] A única pessoa com quem partilho a casa está a transformar-se num ogre.
As coisas estão a ficar duras.
"Lamentamos a decisão do Presidente dos Estados Unidos de ordenar o fim do financiamento da OMS", disse Tedros Adhanom Ghebreyesus.
Uns dizem que é a revolta da natureza.
Pensávamos que era tudo nosso, mas não.
Karl Kraus: “não há só máquinas, há também tempestades”.
Esquecemo-nos das tempestades.

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