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Diário da Peste. Um anúncio num site de horóscopos

Diário da Peste,
12 de abril

Um anúncio num site de horóscopos:
“Fuja das preocupações.
Tenha mais espaço e segurança no seu e-mail.”
A astronomia a querer ser moderna e desactualizou-se nos perigos.
Manhã. A informação:
“Andrea Bocelli dá concerto de Domingo de Páscoa na (deserta) Catedral de Milão”
Vai cantar Ave Maria de Bach. 18 horas.
Bach sabia as coisas antes do tempo.
Música que esclarece - um horóscopo sonoro.
“ia eu entre as ruas e a atmosfera, chegando e despedindo-me”.
Entre as ruas e a atmosfera passam pessoas assustadas.
Vejo da janela e é estranho.
“Fuja das preocupações.
Tenha mais espaço e segurança no seu e-mail.”
Na rua à frente da casa as pessoas não fogem, mas aceleram.
Não se deve olhar demasiado para cima; os astros não estão à altura dos nossos olhos.
Nem para cima nem para baixo.
Eu continuo à volta disto, a olhar para baixo.
O enorme número chamado Googol.
E um outro ainda maior.
Número 10(10100) ou 10googol
Em vez de contar pelos dedos, observo a estética do 10googol
Não é belo, mas é da família daquilo que é belo.
Merece ter uma linha a sós
10googol
Uma frase terrível de Canetti: “Ele refugiou-se em Deus. Aí é onde mais gosta de sentir medo.”
Escolher os sítios onde se prefere ter medo.
Muitos hoje preferem ter medo dentro de casa. Outros não.
Olho para Roma e Jeri. Uma com ar de louca, a Roma; outra, a Jeri, com ar de quem está ao lado de uma louca.
Ter um número na parede como se tem um quadro.
Como se o número fosse cor ou desenho.
Pintar a parede de 10googol
Notícias animadoras, outras não, outras mais ou menos, outras sim.
“Primeiro-ministro britânico Boris Johnson recebeu alta e saiu do hospital”.
Agradeceu aos médicos e disse: salvaram-me a vida.
Horóscopo, uma síntese:
“Forte capacidade de exteriorizar as ideias e criar novas parcerias.”
Parceria a um - digo ao meu pai, via telefone.
Um par com um a menos dá um, responde ele.
Os astros completamente dementes, penso.
Uma avaria súbita também lá em cima.
Duas notícias, uma sobre astrologia:
“Saturno deixa Capricórnio por três meses a partir de março”.
No tal site.
E duas sobre a superfície simples das coisas, aquilo que se passa na terra:
“Índia prolonga confinamento por tempo indeterminado”
E “Argentina prolonga quarentena até 27 de abril.”
Uma frase: bastou “o mais pequeno elemento da natureza, um vírus", para que a humanidade recordasse que é mortal e que a "potência militar e tecnológica" é insuficiente para a salvar.
Foi o que disse o padre Raniero Cantalamessa no Vaticano.
No fim-de semana estava anunciado sol, por isso o governo turco impôs isolamento obrigatório.
Em Ancara, Istambul: 31 cidades no total.
Temiam que muitos esquecessem os conselhos e saíssem para aproveitar o calor.
O que antes estava em vigor era um aconselhamento.
Fiquem em casa, é mais sensato.
Com o sol e o sábado veio a proibição clara.
Obrigatório o isolamento em casa.
Conhecidas há muito as recomendações para não sair em momentos de intempérie.
Tufões e tempestades, temperaturas abaixo do mais baixo que o humano suporta.
Isto sempre colocou os cidadãos em pose à janela. Nada de novo.
Mas agora, é o bom tempo que faz tocar o sinal de alarme.
Todos para casa que vem aí um dia lindo.
Um boletim meteorológico também demente.
Amanhã vai estar bom tempo: por favor não saiam de casa.
Adélia Prado, uma entrevista ao jornal Globo.
“A democracia brasileira parece um coxo fugindo ao temporal”.
18 horas e pouco, atraso-me.
Bocelli cabelo branco.
Live no Youtube.
Os cegos envelhecem de maneira diferente.
Tenso, decidido e calmo.
Não há nada nele que esteja noutro sítio.
Ou sintetizar ainda mais.
(A linguagem merece ocupar o mínimo de espaço.)
Nada nele está noutro sítio.
Melhor assim.
A pontaria da linguagem é consequência da sua síntese.
Ser muito em pouco espaço.
O mesmo com a voz que sai de um corpo imóvel.
Muito com pouco movimento.
Entro no Youtube perto do final do concerto.
Bocelli está fora da Catedral de Milão, alguns passos e pára.
No exterior, canta Amazing Grace.
“Antes estava perdido, mas agora encontrei-me.”
Imagens das cidades vazias.
Paris, Londres, Milão.
Nova Iorque, Times Square deserto.
Apenas um polícia com colete amarelo a andar rápido.
I was blind but now I see.
Falo com um amigo italiano.
Falamos de Paolo um menino de catorze anos, do sul de Itália.
Pergunto-lhe se ele sabe a partir de que idade se começa a ter coragem?
Dez anos?
Menos, claro.
Aos dez anos há muitos actos de coragem.
Quatro, cinco?
Pensar nisto: a partir de que idade aparece a coragem?
Um bebé depois de um ano já pode ser corajoso, diz ele.
Antes não.
“Em Nova Iorque só no dia de hoje morreram”…a chamada cai.
Bocelli, um fato impecável, cabelo branco.
Só depois é que precisa de ser conduzido.
Quando canta é evidente que vê.
“As vezes ele tem a impressão de levar olhos falsos, colocados por Deus.”
Uma frase de Canetti.
Imagino olhos falsos colocados por Deus começarem a ver coisas que os outros não vêem.

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