Jerónimo Martins já deu formação e emprego a mais de mil pessoas com deficiência nos centros Incluir
NUNO BOTELHO
Duas colaboradores da dona do Pingo Doce foram visitar a UPS nos EUA e viram que a empresa americana dava formação a pessoas com deficiência literalmente dentro de um avião. E pensaram: “Se eles conseguem um avião, nós conseguimos uma pequena loja, por amor de Deus”. E assim nasceram os centros Incluir, em Telheiras e em Salgueiros. O Expresso SER foi visitar o de Lisboa
O grupo Jerónimo Martins lançou em 2015 um programa que visa a empregabilidade de grupos de pessoas em situação de desvantagem no acesso ao mercado de trabalho, com destaque para pessoas portadoras de deficiência, migrantes, refugiados e pessoas em situação social de risco. No âmbito deste programa, Susana Correia de Campos, Head of Corporate Employee Relations and Internal Social Responsibility do grupo e Teresa Santos, responsável de operações do Programa Incluir, foram lá fora visitar outras empresas para ver o que se fazia nesta área de empregabilidade de pessoas com alguma incapacidade. Foi numa visita a um simulador de avião da empresa de logística UPS que tiveram o clique de fazer pequenos supermercados, a replicar os verdadeiros, onde a empresa de distribuição dá formação a pessoas com deficiência. Foi assim que nasceram os Centro Incluir, primeiro em Lisboa e depois no Porto.
O Expresso SER foi conversar com Susana Campos, Teresa Santos e Ana Carina Fernandes, esta última responsável de gestão do Programa Incluir. Conversámos no Centro Incluir, em Telheiras, um espaço que replica um mini supermercado (com caixas de pagamento e produtos verdadeiros) e que serve para simular as tarefas de gestão de loja, de venda de produtos e de atendimento aos clientes.
Como é que surge o programa Incluir? [Susana Correia de Campos] Em 2013/2014 começámos a perceber que havia várias lojas a integrar pessoas com deficiência para estágios. Ao nível da comunidade local, as instituições pediam estágios para pessoas com deficiência às nossas lojas. Quisemos perceber mais, tivemos curiosidade em perceber porque é que estas pessoas vinham, o que é que procuravam, e começámos a querer reter as pessoas com deficiência que provinham dessas instituições. Percebemos claramente que eram pessoas que tinham enormes dificuldades no acesso ao mercado de trabalho.
Nós somos grandes empregadores [o grupo emprega 33 mil pessoas em Portugal], vamos ao mercado de trabalho buscar muita gente. Começámos com projetos pilotos e começámos a perceber o que é que funcionava, o que é que não funcionava e, em 2014, criámos este programa Incluir que tem como objetivo integrar pessoas que não estão no mercado de trabalho, ou que estão sub-representadas no mercado de trabalho. E não só pessoas com deficiência ou com incapacidades, são os migrantes, os refugiados, as pessoas em situação social de risco, ex-tóxico dependentes, ex-presidiários, são pessoas que claramente têm problemas de empregabilidade.
E então criaram este programa. Começámos assim em 2015, fomos crescendo, fomos ampliando a nossa ambição para sermos inclusivos na verdadeira acessão da palavra. É muito mais do que as quotas que hoje se discutem. Se estivéssemos a falar de quotas não estaríamos aqui. Porque as empresas da nossa dimensão têm um número suficiente de colaboradores para poderem preencher as quotas da lei.
Mas, mais do que isso, é garantir que somos inclusivos, que atraímos todas as pessoas, que temos na nossa força de trabalho representados todos os grupos sociais, as nacionalidades, as gerações e, acima de tudo, as pessoas com deficiência ou pessoas que estão em situação de exclusão social.
Fazem estas formações para consumo interno, do grupo? Neste momento, estamos a trabalhar para as companhias do grupo. E não temos muitos candidatos, por muito estranho que pareça. Temos vagas em aberto e, portanto, neste momento estamos a satisfazer as nossas próprias necessidades em termos de retenção de talento.
Quantas pessoas é que já formaram? Temos três eixos: a deficiência/incapacidade, os refugiados/emigrantes e as pessoas em situação social de risco. Isto é um frame mental, mas na práticas são aquelas pessoas que não encontram oportunidades de uma forma fácil. Começámos por criar parcerias com instituições que eram especialistas nas áreas da inclusão social e começámos a fazer projetos pilotos. Nos migrantes, começámos, por exemplo, a integrar sírios e imigrantes provenientes dos PALOP.
Desde 2015 e até ao dia de hoje já demos mais de mil oportunidades de formação e/ou trabalho. Parte destas pessoas estão hoje connosco e isso é maravilhoso. Outras pessoas não ficaram connosco, mas também encontraram o seu lugar no mercado de trabalho. Destas mil pessoas, claramente que a deficiência e a incapacidade foram os números maiores. Talvez 70% deste número são pessoas com incapacidade ou deficiência.
As pessoas pagam para ter formação nos vossos centros? Não há ninguém que pague para estar aqui. Nós é que pagamos para as pessoas estarem aqui. A formação prática em contexto de trabalho é trabalho. Além disso, muitas vezes são pessoas que estão em situação de pobreza ou exclusão social, portanto esse rendimento é um rendimento fundamental. O pagamento é equiparado ao dos nossos colaboradores. Mesmo em contexto de formação, antes da contratação. Isto é fundamental para nós, é um ponto de honra. As pessoas vêm para aqui e já estão a receber, consoante a categoria e consoante a função.
Dão a formação neste espaço onde estamos? Temos neste momento dois centros. E estes dois centros vão servir uma parte significativa das nossas lojas, nas zonas onde temos mais lojas, Lisboa e Porto. Depois, no resto do país, fazemos as formações muitas vezes nas lojas, que é para evitar as mobilidades, o ónus de estar a deslocar excessivamente as pessoas.
Uma réplica de um supermercado em Telheiras onde a empresa dá formação
NUNO BOTELHO
“Cada centro custa cerca de um milhão de euros, depois temos um budget de gestão”
Quanto é que custa fazer estes centros? Cada centro custa cerca de um milhão de euros, depois temos um budget de gestão, mas em termos de investimento custou cerca de um milhão de euros. Estamos a falar de valores muito significativos.
Têm uma equipa a trabalhar aqui permanentemente? Fizemos dois investimentos que eram cruciais. Por um lado, criámos uma equipa técnica interna. Desengane-se a empresa que pensa que chega aqui e atrai, retém e desenvolve pessoas com deficiência sem ter uma equipa técnica que o suporte. A Teresa [Teresa Santos, responsável de operações do Programa Incluir] é a pessoa responsável pela equipa técnica. Estamos a falar de pessoas que trabalham em empregabilidade de pessoas deficiência ou incapacidade. Fomos buscar pessoas com mais de 20 anos à Fundação Liga, à Cercica, pessoas com provas dadas a nível daquilo que era o seu percurso. É uma área muito técnica e temos de reconhecer aqui a nossa ignorância, ou seja, nós aqui somos merceeiros, como costumamos dizer.
E depois, a Ana Graça, que é amblíope, está a gerir o programa Incluir com a Ana Fernandes, e a gestão é efetivamente gestão, ou seja, estamos a falar de indicadores de medição de impacto, de avaliações de desempenho. Porque nós não fazemos isto por mera filantropia ou generosidade, as pessoas têm que ser produtivas. Esta produtividade é uma produtividade necessária para ambas as partes; para nós porque temos o negócio aberto e precisamos de pessoas produtivas, mas também para as próprias pessoas. Diz-nos a experiência que quando criamos relações em que essa produtividade não acontece é a própria pessoa que se vai embora porque não se sente útil.
Falava em dois investimentos. Qual é o segundo? O segundo investimento, além das equipas técnicas, foram os centros Incluir, porque precisámos efetivamente de espaço um bocadinho mais de laboratório, um bocadinho mais recolhido, onde pudéssemos ter este desenvolvimento de competência, fora do stress das lojas. Porque as lojas têm muita pressão, dos clientes, das equipas, etc… O que precisávamos era de áreas mais recatadas onde essas competências pudessem ser treinadas e desenvolvidas de forma customizada, ou seja, cada pessoa ter o seu próprio ritmo de aprendizagem e as suas próprias metodologias. Os centros são o segundo grande investimento e têm como objetivo criar este espaço-escola. Servem para simular as tarefas de gestão de loja, mas até servem para outras tarefas como role play de atendimento, simulações de entrevistas, de conversas.
Quem é que dá essas formações? A equipa técnica da Teresa faz todo o processo. Fazem a entrevista, fazem testes de motricidade fina, testes de comunicação. Porque, efetivamente, há uma coisa que já percebemos: temos de encontrar chaves de comunicação com os outros. E isso é tão válido para pessoas com deficiência como para pessoas sem deficiência. Não interessa o diagnóstico: se é uma situação de autismo, se é e uma situação de trissomia 21, se é cegueira, se é mobilidade reduzida, para nós isso não é muito relevante. Duas pessoas com autismo não têm o mesmo comportamento, os autismos são totalmente diferentes.
Quer explicar como funciona o Centro, Teresa? [Teresa Santos] Tens quatro pessoas aqui em baixo e depois lá em cima (Salgueiros) tenho também três pessoas. O que é que nós fazemos? Além de fazer as entrevistas, fazemos avaliação funcional, que é identificar não só quais são as maiores dificuldades da pessoa, mas principalmente as suas competências, onde é que a pessoa é boa, para fazermos a avaliação do posto de trabalho. Depois fazemos o acompanhamento que acaba por ser a parte mais importante.
Isto foi realmente um grande investimento da Jerónimo Martins porque isto é uma equipa única. Basicamente, nós somos todos merceeiros e de repente aparece aqui uma equipa que é completamente especializada na deficiência, que já fazia isto, que já vem de instituições, e já fazia este trabalho de ir atrás das empresas a pedir apoio na empregabilidade de pessoas com deficiência para integrar no mercado de trabalho. Depois a equipa também ajuda muito com a adaptação do posto de trabalho na loja. Há coisas fantásticas que esta equipa já fez. Nós temos pessoas cegas a trabalhar na padaria, cafés e bolo e temos o braile onde estão os preços.
Antes de irem para uma loja, há uma adaptação prévia. [Teresa Santos] Nós não colocamos ninguém sem fazer primeiro uma adaptação de posto de trabalho. Uma pessoa de cadeira de rodas que vá, por exemplo, trabalhar para uma caixa, mesmo que já esteja habituada a estar sentada o dia todo, é importante estar confortável. As pessoas quando não estão confortáveis no posto de trabalho, acabam por desistir e ir embora. Se a caixa for um bocadinho mais alta, por exemplo, nós pomos uma plataforma. Há pessoas que não querem ficar sentadas nas suas cadeiras de rodas, e querem ir para a cadeira; então arranjamos e adaptamos uma cadeira que seja própria para esse candidato. São pequenas coisas que vamos mudando.
Outro exemplo. No nosso centro de logística, a nossa operação tinha muito medo em integrar pessoas surdas. Porquê? Porque há muitas máquinas. Como é que eles vão ouvir e perceber que vem uma máquina? Isto é um perigo. Então o que é que se fez? Pusemos espelhos pelos cantos, como os espelhos retrovisores, para o nosso colaborador saber quando é que vem aí uma máquina. E até hoje não houve acidentes de trabalho. E temos os dois lados, tanto o colaborador como a equipa, encantados. E já disseram que querem mais pessoas porque isso vem mudar completamente o jogo. Porque as pessoas com deficiência, quando lhes damos uma oportunidade, ficam tão motivados e tão felizes que querem é ficar connosco.
Quantas pessoas têm permanentemente em formação? [Ana Fernandes] Neste momento estamos com cerca de 70 formações a decorrer. Temos pelo menos uma turma por mês em cada Centro Incluir e as dimensões das turmas vão variar muito de acordo com o perfil dos candidatos, entre 6 e 12 pessoas. Quando temos aqui colaboradores surdos temos de ter aqui um intérprete, tudo isso condiciona o tamanho das turmas que fazemos. Estão aqui duas semanas, e na primeira semana estão nesta sala a ter estes conteúdos mais teóricos, mais comportamentais, falamos de segurança e saúde no trabalho, segurança alimentar, uma série de temas que são transversais e fundamentais.
Depois, no caso das pessoas que vão para loja, temos uma semana em que estão ali [na sala a imitar um supermercado] a simular tarefas reais para as quais vão ser contratadas. Esta equipa técnica, em conjunto com os formadores das companhias, estão uma semana com eles a simular. O passo a seguir são então dez semanas em contexto real de trabalho, com um tutor. Por norma um chefe de secção, por norma há até dois tutores para garantir que estas pessoas estão sempre acompanhadas.
Os tutores acompanham essas pessoas nas lojas. [Susana Campos] Os tutores são de facto a nossa maior ferramenta. Tanto que este ano apostámos na sua formação. Chama-se Formação Liderança para a Diferença. Estamos a formá-los e a apoiá-los naquilo que é a sua capacidade de liderar qualquer um, a diferença, seja ela qual seja. Damos competências, desde os aspetos mais motivacionais, de relacionamento com o tema, e toda a parte técnica. Por exemplo, quando tenho uma pessoa em cadeira de rodas, fico em pé, enquanto a pessoa está em cadeira de rodas? Ou devo sentar-me e corro o risco de a infantilizar? Coisas e dicas deste género que ajudam muito naquilo que é a comunicação com a outra pessoa.
Já pensaram exportar estes Centros Incluir para a Polónia e para a Colômbia onde têm lojas? Sim, ainda esta manhã tivemos uma reunião a falar sobre isso. O Programa Incluir tem tudo para poder ser trabalhado, escalado. Por exemplo, este ano, por força das circunstâncias da guerra, a Polónia recebeu imensos ucranianos e aí temos o Programa Incluir da forma mais dura e crua. Porque o Programa Incluir, que ainda não existe formalmente na Polónia, na prática e efetivamente deu-se, desenvolveu-se de forma muito espontânea na organização.
Susana Correia de Campos, Head of Corporate Employee Relations and Internal Social Responsibility da Jerónimo Martins
NUNO BOTELHO
“Nós não fazemos isto por mera filantropia ou generosidade, as pessoas têm que ser produtivas”
Há pouco dizia que há poucas pessoas no mercado? Hoje em dia, até por força da lei das quotas, há muitas pessoas a procurar. As estatísticas dizem que estas pessoas existem em Portugal e dizem, aliás, que temos mais de um milhão e meio de pessoas em situação de desemprego com condições dedeficiência ou incapacidade. Se não estão nas instituições, estão em casa. Por isso é que criámos uma campanha, através dos meios de comunicação, para chegarmos às pessoas que estão em casa. E no espaço de dois meses tivemos mais de 1.000 candidaturas. Tivemos no total, no ano passado, 2.500 candidaturas ao Programa Incluir.
É imensa gente. [Ana Fernandes] Até vou partilhar um projeto que está a sair, ainda nem o comunicámos. A equipa da Teresa e a equipa do learning corporativo lançou este mês uma plataforma interna, de educação, onde as pessoas acedem livremente a um conjunto de formações, e uma das formações é em língua gestual portuguesa. Se eu tiver, por exemplo, um colega surdo, vou querer aprender como é que lhe vou dizer bom dia ou dizer que precisamos de ir repor frutas e legumes. Ou então tenho um cliente que é surdo e que vai todos os dias à minha loja. Enquanto gerente, quero comunicar com ele.
E uma app para todos os funcionários? [Teresa Santos] Isto é uma aplicação no telemóvel que vai estar disponível para todos os colaboradores do país. Tivemos tantos pedidos de pessoas das lojas e de pessoas surdas a trabalhar. Montámos esta plataforma e a verdade é que já temos pessoas supercontentes. Por exemplo, de repente, batemos palmas e a língua gestual é assim [faz o gesto de agitar as mãos]. A pessoa fica reconhecida.
Tivemos aqui um evento, em que tínhamos alguns colaboradores surdos, e toda a gente começou a bater palmas porque foi uma grande apresentação, e o nosso CEO começou a fazer isto [o gesto de agitar as mãos]. Os colaboradores ficaram emocionados porque ele teve esse cuidado de bater palmas em língua gestual.
Há mais empresas a fazer coisas parecidas com o Centro Incluir? [Susana Campos] Nós não conhecemos. Fomos aos EUA perceber com algumas organizações o que é que elas faziam, e descobrimos estes centros, descobrimos centros de formação que eram ambiente de formação, mas sempre com ambiente igual ao ambiente de trabalho. As equipas técnicas lá são governamentais e nós não temos isso aqui, por isso criámos a nossa própria equipa técnica. Acima de tudo, o que mais nos impressionou foi a simplicidade, o trato, a falta de estigma, a falta de tabus com que geriam e a facilidade com que geriam. Está entranhado.
[Teresa Santos] Uma que me impressionou imenso foi a UPS. Nós temos uma loja Pingo Doce, a UPS tem literalmente um avião para as pessoas com deficiência praticarem, usarem o avião para ver como se arruma. Se eles conseguem um avião, nós conseguimos uma pequena loja, por amor de Deus.
[Susana Campos] E nós estávamos as duas dentro do avião e pensámos, isto é a nossa loja. Quando lá estivemos pensámos, não “precisamos de um avião, mas precisamos de uma loja”. Para nós esta frase resume muito aquilo em que acreditamos: “não há pessoas sem capacidade, o que há é pessoas sem oportunidades”. É a diferença que nós estamos aqui a fazer.
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