29 outubro 2009 17:45
Para escapar à violência, os brasileiros refugiam-se em condomínios como o Alphaville, nos arredores de São Paulo, e que funcionam como verdadeiras cidades dentro da grande metrópole
29 outubro 2009 17:45
São sete horas da manhã quando a empregada doméstica Sonia Viana desce do autocarro. Dez minutos depois, chega ao condomínio Alphaville 2 e dirige-se à entrada exclusiva para "prestadores de serviço". Embora trabalhe há três anos para a mesma família e já conheça os seguranças, sempre que passa pela portaria é obrigada a abrir a mala para ser revistada. À saída, só pode levar qualquer objecto se tiver autorização por escrito da patroa. Normas do condomínio. Na casa onde Sonia trabalha, vivem quatro pessoas e há mais duas empregadas, além dela. Talvez por isso, o facto de ser revistada não a incomode. "É até bom, vai que some alguma coisa... É como diz o ditado: quem não deve não teme", justifica. "Eu entendo, isto aqui é como se fosse outro mundo. As pessoas vivem trancadas, com medo da violência".
Alphaville fica no município de Barueri, a 30 quilómetros de São Paulo. Nas cercanias há mais de 20 condomínios, contornados por muros, protegidos por arames electrificados. Em todos, as portarias blindadas são controladas por seguranças (alguns armados) e as fichas de admissão registam no computador o número do bilhete de identidade e a fotografia do visitante. Três acessos diferentes dividem a entrada entre moradores, visitantes e prestadores de serviços. O acesso de estranhos só é permitido com a anuência do morador. E caso o visitante se dirija para outra alameda, que não a da família que autorizou a entrada, um automóvel com seguranças aproxima-se para investigar. "O que faz aqui? Fotografar é proibido".
A exemplo dos subúrbios ricos norte-americanos, as casas não têm muros. Os lotes são grandes, há abundância de automóveis nas garagens e piscinas em todas as residências. Quanto mais emergente a família - designação dada aos novos-ricos -, mais grandiosa a construção. Nos condomínios mais prósperos há casas com cúpulas, réplicas de palácios franceses e imitações de templos greco-romanos.
Apartheid social
Para quem vive no Brasil, a ideia de condomínios fechados com acesso controlado é bastante comum. Alphaville tornou-se um paradigma dessa filosofia. O conceito, criado em São Paulo na década de 1970, foi posteriormente exportado para vários estados e chegou a Portugal. Para muitos urbanistas, Alphaville é uma aberração, uma espécie de gueto, que isola e promove o apartheid social ao estimular a convivência apenas entre pessoas da mesma classe, num mundo à parte.
"Vivemos na ilha da fantasia", diz Antonio Carlos Hungria, morador há 18 anos. Ele, a mulher Lucya e cinco filhos foram os primeiros da família a chegar. Depois convenceram irmãos, sogros e cunhados a mudarem-se para lá.

A família Hungria é um modelo da vida comunitária local. Os filhos estudam nos colégios de Alphaville, frequentam grupos de amigos na vizinhança e, como os pais, participam nos jantares gourmet, de churrascadas, dos desportos e do lazer entre muros. Para Lucya é um privilégio criar as crianças ali. Mas o facto de Alphaville ser tão fechado é uma das suas preocupações. "Tenho receio que eles vivam numa redoma, com uma noção da vida um pouco irreal. Por isso, sempre lhes digo que isto aqui não é a realidade. Todo o mundo gostaria de viver num lugar assim".
Os Hungria são donos da pizaria Soggiorno, em São Paulo, mas abriram uma filial em Alphaville empresarial, a área de livre acesso que cerca os condomínios, onde há comércio, escolas e sedes de empresas multinacionais. Esse contacto constante com o público deu-lhes a possibilidade de conhecer mais de perto o perfil dos moradores. "Tem muita gente por aqui que vive de aparências. Sabe como é? Tem aqueles que andam de Ferrari, mas passam cheques sem fundo", queixa-se António Carlos, que teme o crescimento descontrolado da região, e sente saudades dos tempos em que chegou, quando o telefone era um artigo de luxo e custava 10 mil dólares.
O culpado é Godard
Hoje, nas áreas abertas, que dão acesso aos residentes, há trânsito na hora de ponta, roubo de carros e violência. "Alphaville não foi concebido para crescer tanto, daqui a alguns anos será um caos", imagina a família Hungria, ainda feliz com a tranquilidade da vida entre muros. "Aqui a segurança é total. Só nesta residencial há 40 seguranças e 36 câmaras instaladas nas ruas", informam eles, que atribuem às facilidades de pagamento a explosão populacional.
A grande ironia é que o nome Alphaville foi inspirado no filme homónimo, de Jean-Luc Godard, que em 1965 tratava dos conflitos existenciais numa cidade do futuro dominada por um computador. A sugestão partiu de um dos arquitectos envolvido no projecto urbanístico, pelo simples facto de o nome ter a mesma pronúncia em qualquer idioma. Já o conceito urbanístico seguiu o princípio norte-americano das cidades e subúrbios: soluções em áreas gigantescas, nos arredores de grandes metrópoles, que reproduzem uma cidade com residências, prédios de escritórios e serviços.
Será isto viver no paraíso?
O primeiro terreno para a criação de Alphaville foi comprado em 1973. A ideia, de dois engenheiros, colegas de faculdade e sócios na construtora Albuquerque, Takaoka SA, era criar um espaço empresarial com o uso do solo regulamentado, para atrair indústrias não-poluentes. A primeira empresa a comprar um lote para instalar a sua sede foi a norte-americana Hewlet Packard (HP). Anos depois, os condomínios residenciais surgiram para acomodar quem trabalhava nas indústrias e escritórios. Ninguém imaginava a procura externa e o sucesso que se seguiu.
Nos municípios de Barueri e Santana do Parnaíba, onde tudo começou, há hoje 18 Alphavilles. Nas proximidades surgiram novos condomínios, com outros nomes, inspirados no mesmo modelo. Ali residem cerca de 50 mil pessoas e há uma população flutuante de 150 mil. O Alphaville mais rico é Tamboré, reduto dos 'emergentes', onde uma casa pode custar 7 milhões de euros.

"Isto aqui é um paraíso. Mas eu sou suspeito para falar", diz Fábio Valério, da Imobiliária Guizzardi, um dos mais antigos comerciantes de imóveis da região. "No início, a gente chegava a vender e revender o mesmo terreno comercial duas e até três vezes ao dia, cada vez mais caro, tal a valorização".
Cerca de 10% dos imóveis comerciais estão nas mãos de portugueses, que chegaram "com uma mão na frente e outra atrás" e se tornaram grandes investidores, revela. "O Manuel da padaria La Ville é um exemplo: ele está tão rico que já não sabe o que tem. De vez em quando a gente liga-lhe e percebe que ele não se lembra, de imediato, o que comprou ou vendeu".
Além de negociar imóveis, Fábio Valério faz reformas e construções. Para isso, montou um showroom imponente, onde as paredes trabalhadas, com detalhes pintados em dourado, foram copiadas dos palácios franceses. "As pessoas aqui precisam diferenciar-se e eu sou dos poucos que têm mão-de-obra para este tipo de decoração", anuncia, enquanto faz uma declaração de amor à região. "Daqui não saio, isto é tão urbano que tem até trânsito! Em compensação, é tão seguro que só não durmo de portas abertas para não entrarem mosquitos".
Infelizes com dinheiro a mais
A vida é como em cidades pequenas: todos falam da vida de todos. Paola Mantegazza, mãe de nove filhos, quatro adoptivos, que vive há seis anos no Tamboré 2, começa por enumerar as vantagens. "Nós sempre demos ouvidos às críticas e achávamos que aqui era uma opção de vida pouco prática, que resultava em muita perda de tempo na estrada, entre o ir e vir. Mas agora não quero ir embora nunca mais".
E depois vem o relato das dificuldades: de relacionamento dos filhos com os vizinhos, da hipocrisia dominante e de quanto o dinheiro é um valor supremo para medir as pessoas. "Apesar de sermos mais ricos do que muita gente, a nossa família é considerada muito livre e esquisita para os padrões locais". Segundo ela, os filhos não se adaptaram às escolas porque a maioria dos adolescentes é inculta e extremamente consumista. A culpa é dos pais, que estimulam essa mentalidade e chegam a presentear garotos de 16 anos com carros de luxo, numa idade em que a lei os proíbe de conduzir. "É preciso uma estrutura emocional muito forte para sobreviver. Nunca vi tanta gente mesquinha e elitista: o que mais tem aqui são clínicas de terapia e pessoas infelizes com dinheiro de mais".
Juventude irrequieta
A grande ocorrência de acidentes de trânsito envolvendo jovens de Alphaville, que conduziam carros potentes a alta velocidade, já motivou várias campanhas públicas. Seja contra o consumo excessivo de álcool ou pelo uso responsável do automóvel. Ricos e isolados entre semelhantes, os adolescentes reflectem as contradições da vida em condomínio fechado. Embora façam tudo nas cercanias, não gostam de frequentar os mesmos centros comerciais onde vão os "baruebas", nome pelo qual designam os moradores mais pobres dos bairros próximos.
"Quem é daqui não se mistura. Eles acham que são diferentes de todo o mundo, mas não são", diz a doméstica Cida Moreira, 56 anos, que lava, passa a ferro e cozinha para um casal de idosos e mora na periferia de Alphaville. "Para viver aqui é preciso dinheiro e muita gente precisa bancar o que não é: sabe aquelas pessoas que comem mortadela e arrotam filé mignon?".
Na porta de uma casa, a vendedora de refeições Marcinália Silva aguarda o marido que foi entregar o almoço para os operários que trabalham nas obras. Ela e o marido preparam entre 70 e 80 refeições por dia e frequentam os condomínios como prestadores de serviço há vários anos. Morar ali é o seu sonho de consumo. "Meu e de qualquer pessoa. Tudo aqui é perfeito, a começar pelas mansões". Como ela, muitos se encantam pelo Alphaville "way of life", um estilo de vida repleto de paradoxos.
Criou os filhos, divorciou-se, voltou a casar-se, mas não mudou de endereço desde que se estabeleceu definitivamente no Brasil, como sócio do Alphaville Urbanismo, onde, obviamente, tem casa - no primeiro condomínio a ser construído e o maior de todos, com 1100 lotes. "Cada um faz a sua receita de felicidade e eu sou um bicho do mato", diz, e acrescenta logo a seguir: "A noção de liberdade é o bem que mais se preza aqui." Formado em Direito Administrativo, Nuno Alves esteve no Brasil pela primeira vez em 1975, como estudante, depois da Revolução dos Cravos. Terminou o curso em São Paulo, deu aulas e voltou para Lisboa dez anos depois. Mais tarde, em 1988, um dos criadores do projecto Alphaville no Brasil, o engenheiro Renato de Albuquerque, procurava um sócio para implantar a marca em Portugal. Conheceu Nuno Alves e, juntos, construíram a Quinta da Beloura 1 e 2, em Sintra, e a Quinta dos Alcoutins, no Lumiar, em Lisboa.
