Efeméride

O "general sem medo" que levantou um país

13 fevereiro 2015 0:42

Imagem inédita, feita 
pelo “Fotógrafo Cruz”, da 
receção a Humberto Delgado no Porto. A foto vem no livro da filha Iva, que é 
lançado esta sexta-feira

Há precisamente 50 anos, Humberto Delgado foi assassinado por uma brigada da PIDE. "Meu Pai, o General Sem Medo", livro de memórias de uma das filhas, é lançado esta sexta-feira e inclui várias cartas inéditas.

13 fevereiro 2015 0:42

O seu "obviamente demito-o", anunciado numa conferência de imprensa no Café Chave d'Ouro, eletrizou o país. Desconhecido da opinião pública, a coragem, a surpresa e a ousadia do general de afastar Oliveira Salazar do poder era todo um programa político. Sem acesso à televisão e às rádios, bastaram os títulos de alguns jornais e a informação boca a boca para que a campanha eleitoral se transformasse num quase levantamento nacional. Humberto Delgado logo passou a ser conhecido por "general sem medo". Destemido, insistiu em levar até ao fim a campanha para a presidência da República. Nunca será possível saber se, apesar de todas as limitações impostas pela ditadura, venceu o sufrágio de 8 de junho de 1958 - como insistem numerosos historiadores. O regime atribuiu-lhe nem 25% dos votos, dando a vitória ao candidato oficial, Américo Tomás. Mas os testemunhos e as provas documentais sobre fraudes de toda a ordem são inúmeros. Como quer que seja, o seu destino estava traçado. Transformado em inimigo público número 1 de Salazar, viria a ser assassinado por uma brigada da PIDE a 13 de fevereiro de 1965 - passam agora 50 anos.    

Na ausência de qualquer iniciativa por parte do Governo ou da Presidência da República, a Câmara Municipal de Lisboa organiza esta sexta-feira uma série de iniciativas destinadas a evocar o cinquentenário da morte. Destaque especial para o lançamento do livro de memórias de uma das filhas, a historiadora Iva Delgado. Editado pela Caminho, "Meu Pai, o General Sem Medo", inclui várias cartas inéditas. São cartas pessoais do pai, escritas algures no exílio e nunca datadas, que exalam uma ternura sem fim. Ternura e raiva. Numa delas lê-se: "Querida Ivinha. Minha querida filha, minha muito queridíssima filha, se alguma vez precisares de queimar estas cartas, não hesites. Não quero é que sejam lidas por eles. Tudo é preferível a esse vexame de saber que violam a Constituição e leem a nossa correspondência". Seguindo tais instruções, Iva queimou a maior parte das cartas. "Toda a vida me arrependi." As que sobraram só agora são reveladas. 

As dez chapas do "Fotógrafo Cruz" O livro inclui ainda uma impressionante fotografia da concentração popular na Avenida dos Aliados, no Porto, a 14 de maio de 1958. Na sua extensa biografia do avô, Frederico Delgado Rosa evoca: "Era a capital do Norte toda ela despejada na sua baixa, numa das maiores concentrações humanas da história de Portugal". As fotos da multidão, que se mobilizou espontaneamente para acolher o candidato a Presidente, foram proibidas pela censura. As imagens só viriam a ser conhecidas depois do 25 de Abril e falam por si.    

Mas as melhores fotografias teriam ainda de esperar mais um quarto de século para serem conhecidas. Da autoria do "Fotógrafo Cruz", foi um telefonema anónimo que "nos finais da década de noventa" alertou a filha do general para o facto de o seu espólio estar na Figueira da Foz. Sem perda de tempo, Iva foi até lá. O autor, de apelido Cruz, já havia falecido há três anos, mas ele e os seus funcionários haviam tido o cuidado de as esconder da PIDE e de as preservar para o encontro com a História. Eram dez fotografias, guardadas numa pasta de fabrico caseiro, com as palavras "Humberto Delgado" escritas a tinta castanha, quase desaparecida, e que permanecera escondida durante décadas. Foi uma velha funcionária, de nome Cândida, quem telefonara a Iva e lhas ofereceu, comovida e orgulhosa.

Destinado a um público escolar, é inaugurada esta sexta-feira uma exposição sobre o general, na Praça José Fontana, em frente da Escola Secundária Camões, onde se realizou o principal comício da campanha em Lisboa. O respetivo ginásio, onde decorreu a sessão, passará a ter o nome do general.   

"Pronto a morrer pela liberdade" O comício do Liceu Camões faz parte dos anais da resistência, devido à forma como a cavalaria da GNR dispersou a multidão que se apinhava na praça. Há mesmo relatos da investida de cavalo no interior do Café Montecarlo, no rés do chão do então cineteatro Monumental, na Praça do Saldanha. Toda a campanha foi uma epopeia, de que o único registo sonoro é o comício de Chaves. Sempre arrebatado, aquele que fora o mais jovem general das Forças Armadas portuguesas foi premonitório: "Eu estou pronto a morrer pela liberdade!"  

Perseguido pelo mesmo regime que ajudara a instaurar em 1926, quando era tenente, Delgado pediu asilo político na embaixada do Brasil em Lisboa. Seguiu-se um longo exílio, que o levou ao Brasil, Argélia, Itália, Checoslováquia, França. Incansável, nunca deixou de conspirar. Esteve envolvido na Operação Dulcineia, o desvio, liderado pelo capitão Henrique Galvão, do navio de passageiros "Santa Maria", provisoriamente batizado de "Santa Liberdade". Seguiu-se a Operação Íkaro, uma tentativa de golpe de Estado a partir da tomada do quartel de Beja. Foi a última vez que esteve em Portugal, durante 12 dias, clandestino e disfarçado: bigode postiço, óculos e cabeça rapada. Teve tempo para telefonar para casa, anunciando-se como 'Senhor Silva', e audácia para visitar a mãe e a irmã, no Convento de Santos-o-Novo. O fracasso da rebelião obrigou-o a retomar o exílio, que acabaria por lhe ser fatal.    

Duas teses sobre a morte Também esta sexta-feira será exibido no Auditório Camões o documentário de António Cunha "General sem Medo", datado de 2008 e que ainda não passou nas televisões. À noite, no cinema São Jorge, é exibido o filme de Bruno de Almeida "Operação Outono". Nome de código da armadilha montada pela PIDE e que vitimou Delgado e a secretária brasileira Arajaryr Campos, o filme desenvolve a tese do biógrafo sobre o crime.     

A investigação de Frederico Delgado Rosa, publicada em 2008, põe completamente em causa a tese do acórdão do Tribunal Militar que em 1981 julgou o crime. De acordo com os juízes, o autor material dos dois homicídios foi o agente da PIDE Casimiro Monteiro, um dos quatro membros da brigada chefiada pelo inspetor Rosa Casaco que foi a Badajoz ao encontro de Delgado. Monteiro foi o único dos quatro que nunca depôs. Consumada a Operação Outono, foi transferido para Moçambique, onde esteve envolvido noutro assassínio: o do líder da Frelimo, Eduardo Mondlane. Depois do 25 de Abril fugiu para a África do Sul, onde terá falecido. Transformado por todos em bode expiatório e julgado à revelia, foi considerado o único assassino pelo tribunal, que o condenou a 20 anos de prisão por duplo homicídio, a tiro de pistola. A biografia - que valoriza a autópsia e os exames periciais feitos pelos médicos legistas espanhóis após a descoberta dos cadáveres -, descarta a hipótese de as mortes terem sido provocadas por bala. O instrumento teria sido "a coronha da própria arma de fogo, usada como contundente, ou uma barra ou algum outro objeto metálico". Autorizado por esta leitura, o realizador do filme mostra Casimiro Monteiro a recorrer a um sinistro pé de cabra.     

Como quer que seja que Delgado tenha sido morto, é historicamente inquestionável que foi o mais grave crime político cometido pelo salazarismo. Promovido a título póstumo a marechal, os restos mortais repousam no Panteão Nacional por decisão unânime da Assembleia da República.    

 

Texto publicado na edição do Expresso de 7 de fevereiro de 2015