Sociedade

Mercedes Sosa: A morte do ícone

5 outubro 2009 15:23

Márcio Resende, correspondente na Argentina (www.expresso.pt)

A Argentina em particular e a América Latina em geral despedem-se hoje da legendária cantora que se transforma em mito. Mercedes Sosa, 'A Negra', será cremada depois de um velório marcado pela música e pelas lágrimas de fãs e do céu. (Veja os vídeos no fim do texto)

5 outubro 2009 15:23

Márcio Resende, correspondente na Argentina (www.expresso.pt)

Um país em comoção, mas uma comoção diferente. Poucas palavras, nenhum discurso. É como se tudo já estivesse dito, como se só as almas falassem. Um entendimento tácito, um doloroso silêncio, de quando em quando recortado por lágrimas profundas, por muita música e por uma chuva que começou nesta madrugada em Buenos Aires.

Em vida, Mercedes Sosa procurava qualquer desculpa para cantar perante um jornalista ou perante algum amigo. Bastava uma frase, alguma lembrança ou alguma pergunta mais profunda. Muitas vezes, o canto era interrompido por algum choro. Assim transcorrem as últimas horas na Argentina.

Milhares de pessoas despedem-se do ícone da cultura argentina e latino-americana num velório popular de 24 horas no Congresso argentino. Uma fila constante de cerca de 300 metros renovada a cada minuto por mais e mais gente que avança lentamente com o pranto em forma de nó na garganta. Muitos levam flores e cartas. Jogam pétalas pelo chão como se santificassem o caminho. Não têm pressa. No fundo, ninguém quer esta despedida.

Depois das primeiras seis horas de velório, já no final da tarde de domingo, as lágrimas silenciosas deram lugar às homenagens. Músicos famosos e amigos em volta do corpo resolveram cantar as principais canções interpretadas pela "Negra", como era carinhosamente chamada.

"Cantava para não morrer"

Mercedes Sosa deixou 40 discos em 60 anos de carreira

Mercedes Sosa deixou 40 discos em 60 anos de carreira

dolores ocho/ap

"Gracias a la vida que me ha dado tanto/Me ha dado la risa y me ha dado el llanto/Así yo distingo dicha de quebranto/Los dos materiales que forman mi canto/Y el canto de ustedes que es el mismo canto/Y el canto de todos que es mi propio canto/Gracias a la vida/Gracias a la vida...".

"Minha mãe não teve nem dor nem sofrimento. Ela viveu a pleno os seus 74 anos. Fez praticamente tudo o que quis. Mercedes foi sempre um símbolo de liberdade", sintetizou o filho Fabián Matus.

Como Mercedes Sosa dizia que "cantava para não morrer", os meios de comunicação cobrem o velório com imagens ao vivo. Mas, em vez de palavras, só a inconfundível voz da maior cantora da história argentina ao longo dos seus 60 anos de carreira e 40 discos. A música não foi interrompida nem mesmo quando a presidente Cristina Kirchner ou o técnico-mito da selecção argentina de futebol, Diego Maradona, irromperam no salão.

"Tínhamos uma relação praticamente de mãe e filho. Ela me protegia quando eu estava mal. Preocupava-se. Elogiava quando estava bem. Dava conselhos protectores a todos", conta Maradona.

Cidadã do mundo

Milhares de pessoas despedem-se de Mercedes no Congresso argentino. Levam flores, cartas e jogam pétalas no chão

Milhares de pessoas despedem-se de Mercedes no Congresso argentino. Levam flores, cartas e jogam pétalas no chão

natacha pisarenko/ap

Por volta das 16h00 de Lisboa, o corpo de Haydé Mercedes Sosa será cremado numa cerimónia íntima.

As suas cinzas serão espalhadas pela província de Tucumán, onde nasceu e cresceu, pela província de Mendoza, onde virou adulta, e pela cidade de Buenos Aires onde vivia. Vivia aqui, mas era cidadã do mundo com passaporte diplomático da grande família latino-americana.

Cantou os mais variados ritmos da música folclórica argentina. Incorporou diversos géneros como o rock, tango e a música popular latino-americana de quem foi a maior representante.

Era tenaz estudiosa e diariamente educava as cordas vocais. Meses antes de falecer, mantinha a voz intacta.

A síntese de tudo o que quis

E como um presente que resume a sua carreira, a sua capacidade de unir e de emocionar, Mercedes deixou neste ano aquele que é considerado o maior de todos os seus legados: o disco "Cantora", um álbum duplo com um DVD que imediatamente chegou aos primeiros lugares dos rankings argentinos e recebeu três indicações aos Prémios Grammy Latino 2009. Gravou canções com alguns dos mais reconhecidos músicos ibero-americanos.

"Ela não sentia que esse disco fosse uma despedida, mas uma síntese de tudo o que quis, de tudo o que sempre fez e de tudo pelo que lutou em vida. Ela podia juntar ritmos e tendências que nem o mais ousado teria coragem de fazer. E quando cantava colocava a natureza da sua voz de modo tão perfeito como Maradona dava um passe", descreve Víctor Heredia, histórico parceiro de inúmeras canções e shows. "Nos últimos dias, ela pedia para escutar o disco. Não para se despedir, mas para o desfrutar", relembra.

"Quando gravamos uma canção com Fito Paez para o 'Cantoras', ela começou a chorar. Nós três terminamos chorando sem saber por quê. Quando perguntei porque chorávamos, ela respondeu: 'porque estamos a cantar'. Era de uma sensibilidade a flor da pele", revela a intérprete Liliana Herrero.

A legendária cantora de 74 anos (nasceu em 9 de Julho de 1935, dia da Independência argentina) manteve sempre uma honestidade intelectual , um compromisso artístico, uma humildade e uma luta pela liberdade a toda prova.

A sua voz ecoou pelos cenários mais importantes do mundo e recebeu inúmeros prémios tanto como artista quanto como pela luta social. Entre tantos, o prémio da Unesco pela defesa dos Direitos da Mulher e diversos Grammy Latinos.

Sólo le pido a Dios

Himno de mi Corazón

Gracias a la vida

Todo cambia

Canción con todos

Cuando tenga la tierra

Como un pájaro libre

La luna llena