Queremos voltar à roupa da vida real

Na crónica ‘Sem Preço’ desta semana, a jornalista Catarina Nunes escreve sobre o que as Semanas de Moda dizem sobre a forma como influenciamos os designers e as marcas
Na crónica ‘Sem Preço’ desta semana, a jornalista Catarina Nunes escreve sobre o que as Semanas de Moda dizem sobre a forma como influenciamos os designers e as marcas
Se as mais recentes Semanas de Moda e a cerimónia dos Óscares dão o tom do que queremos vestir nos próximos tempos, está arrumado o estilo demasiado à vontade, que adotámos nos anos da pandemia, que perde para a elegância intemporal ou para roupas com voz e pontos de vista.
Nos Óscares, a mensagem passada com as indumentárias dos nomeados e dos convidados é clara: correr menos riscos e optar pela sobriedade e segurança das cores e cortes clássicos, em contra-corrente com as extravagâncias que costumam ser a prática neste evento. Até a passadeira assumiu o espírito ‘bege’, trocando o vermelho pela discreta cor champanhe, pela primeira vez na história dos Óscares. Antes disto, nas duas últimas Semanas de Moda de Milão e Paris, já tinham sido dados os sinais de regresso à alfaiataria e à qualidade e preceitos da alta-costura, adaptados ao pronto-a-vestir.
Mas comecemos mais perto, com a Lisboa Fashion Week, mais conhecida como Moda Lisboa. Eduarda Abbondanza não sente grande alteração no estilo de roupa apresentado pelos designers nacionais, que, tendo uma dimensão menor e mais local, mantêm a proximidade com o seu nicho de consumidores. A designer e diretora da Moda Lisboa ressalta, porém, a aposta na alfaiataria de Luís Carvalho, Nuno Gama e Nuno Baltazar, que tem a ver com a geração e estilo destes criadores, e não reflete propriamente a tendência das coleções internacionais do próximo outono-inverno, apresentadas nas restantes semanas de moda.
O que Eduarda Abbondanza salienta, no entanto, são as novas marcas portuguesas de cariz mais jovem e fácil de usar, que trazem um novo público, alavancado no digital. Entra elas encontra-se a Mustique, que desfila pela primeira vez na Moda Lisboa na última edição, terminada a 12 de março, e da qual Eduarda Abbondanza destaca a “linguagem própria para este tipo de vestuário”, “a movimentação de uma grande comunidade” e o “acontecimento incrível” em que se transforma o debute da Mustique. A aproximação à Moda Lisboa começa em maio de 2022, mas só no início de 2023 é que confirmada a presença na edição dos desfiles outono-inverno 2023/24.
Por não terem ainda pronta a coleção para a próxima estação fria, os fundadores da Mustique (Vera Caldeira e Pedro Ferraz) trazem as propostas para este verão, sendo que a própria marca não defende uma distinção estanque entre coleções (nem entre géneros). Por outro lado, o conceito de estações do ano na moda está cada vez mais diluído, seja por um novo estilo de vida que transita entre hemisférios como por questões de sustentabilidade. Mais do que mostrar roupas, a Mustique leva à Moda Lisboa o seu lado divertido e explorador de algumas referências da infância, com modelos a circular entre a assistência e a interagir, oferecendo gelados como um convite para que o público entre no mundo Mustique.
Como característica transversal a esta edição da Moda Lisboa, Eduarda Abbondanza refere a “voz implícita” que faz com que todas as apresentações reflitam a forma como os designers e a marcas nacionais veem a sociedade. Inclusividade, feminismo, diversidade de corpos e religião são algumas das temáticas presentes mais abordadas, com Eduarda Abbondanza a argumentar que, anteriormente, as gerações de designers jovens eram os mais ativistas, mas que agora este posicionamento é comum a todos. A auto-expressão é também, a par com a sustentabilidade, uma das características definidores da tendência do ‘luxo expressivo’, que tem menos a ver com o preço do produto e o estatuto que ele confere e está mais ligado às emoções e valores que lhe são inerentes, jogando com o conceito de inclusividade, que ressoa nas gerações mais jovens, em oposição à exclusividade.
É dentro destas linhas que se enquadra o desfile-performance de João Magalhães, designer de 35 anos, vezeiro na Moda Lisboa. O seu estilo de roupa com mensagens políticas e frases irónicas é extravasado para uma experiência imersiva, que começa com um filme de Leonor Bettencourt Loureiro, questionando a forma como compramos, o desejo e o consumismo. Após o filme, uma encenação ao vivo com vários modelos retrata uma situação de luta por peças de roupa. Sob o lema ‘I Have Good Plans For Your Money’, a apresentação de João Magalhães (que neste dia estreia a loja online www.joaomglhs.com) assume-se como uma caricatura do próprio designer e do mundo em que vivemos, pondo em causa a obsessão por objetos que não sabíamos que queríamos e as emoções despertadas pela ausência do que não precisamos.
Em vez de questionar, as Semanas de Moda de Paris e de Milão mostram aquilo que tivemos em falta durante os anos em pandemia: roupa formal, estruturada e polida. Em Paris, os desfiles terminados a 7 de março acontecem em simultâneo com uma vaga de tumultos e greves em França, a dar o mote à austeridade vista em algumas das marcas mais emblemáticas. Uma das grandes expectativas era a reaparição da Balenciaga, com a apresentação da primeira coleção depois da recente sucessão de polémicas. Demna Gvasalia, diretor criativo da marca, materializou o desejo de se afastar de criações controversas, reconhecendo, nas notas de desfile, que “a moda tornou-se num tipo de entretenimento mas frequentemente essa parte ofusca a sua essência”.
O resultado são blazers e sobretudos pretos oversized, casacos-gabardine clássicos, saias e vestidos drapeados, casacos de pelo e vestidos de festa, trilhando um caminho mais sóbrio, tendo como denominador comum os ombros subidos, e recuperando o legado do fundador, Cristóbal Balenciaga. A Louis Vuitton, a maior marca de moda de luxo, também olha para dentro e celebra França e as camadas que caracterizam o estilo parisiense. À semelhança de outros designers, Nicolas Ghesquière, diretor criativo feminino da Louis Vuitton, inclina-se para o estilo clássico baseado na alfaiataria. Não põe de parte, porém, a reinvenção moderna de referências como o colar de pérolas (transposto para rendas e bordados em vestidos), o tradicional uniforme de serviço nas brasseries francesas (reimaginado em mini vestidos preto e branco) e a utilização das cores da bandeira francesa (vermelho, branco e azul), por exemplo.
Valentino e McQueen optam pela formalidade do preto e Dries Van Noten apresenta roupas pensadas para perdurar. Mas não é por isto que a temporada de semanas de moda deixa de ter os seus momentos de excentricidade viral. Desde a coleção de alta costura de Elsa Schiaparelli (com Kylie Jenner vestida com uma cabeça de leão falsa e a rapper Doja Cat coberta com 30 mil cristais Swarovski vermelhos), passando pelo cão-robot que interage com modelos no desfile da Coperni. Numa era em que a moda é criada para captar a atenção e tornar-se viral, através de celebridades e influenciadoras, o que chama a atenção e se destaca é o estilo moderado e discreto, com estéticas sóbrias. Menos, afinal, é mesmo mais ou pode ser simplesmente o que mais queremos.
Estes aspetos são divisores de águas entre os designers que encaram o desfile como uma oportunidade de espetáculo e os que se focam nas roupas propriamente ditas, tirando-lhes as distrações. A Moda Lisboa mantém ambas as componentes com Eduarda Abbondanza a alegar que “o lado de espetáculo fará sempre parte da moda porque quando os designers fazem um desfile querem impactar o público, é o lado emocionante”. Garantido, ou pelo menos é o que parece, é que o streetwear está a perder força nas semanas de moda mais emblemáticas, como Paris e Milão. Eduarda Abbondanza considera que vivemos uma retoma do essencial da própria moda, baseado na qualidade dos materiais, dos cortes e dos acabamentos.
No universo do luxo fala-se cada vez mais no blandsantding em oposição ao grandsantding, que parece estar a ficar para trás ou, pelo menos, a não dominar totalmente o panorama. Na prática isto significa uma nova modernidade, em que marcas optam por se diferenciar preservando a sua autenticidade e referências em oposição à busca desenfreada da próxima tendência e da atenção (nomeadamente das redes sociais e da imprensa), com criações focadas no potencial viral e na ostentação de logotipos cada vez maiores e mais visíveis. A par deste ‘luxo barulhento’ cresce o ‘luxo silencioso’.
Na Semana de Moda de Milão, encerrada a 27 de fevereiro, as atenções concentram-se na Gucci, por uma razão diferente daquela que em Paris põe a Balenciaga sob escrutínio. A coleção outono-inverno 2023/24 é a primeira assinada por Sabato de Sarno, que sucede a Alessandro Michele, responsável pela reinvenção da Gucci nos últimos anos. O maximalismo desta marca italiana é minimizado com a entrada do ex-diretor criativo da Valentino, que acrescenta à Gucci roupa com menos estardalhaço e mais identificável por uma potencial maioria. Os agora incontornáveis blazers e sobretudos, gangas e carteiras práticas dão o mote, a par com os fatos calças-casaco e saltos baixos, mais os clássicos mocassins e as gabardines beges, entre outras opções herdeiras de Alessandro Michele, como casacos de pelo colorido ou o micro top-sutiã (com um destino questionável na estação fria).
A transição para roupas da vida real é fortalecida também na Prada, com abundância de saias, calças e blusas, em explosão de cores. Miuccia Prada e o seu co-designer Raf Simons assumem o cansaço em relação ao storytelling que tem dominado os desfiles. Optam agora por trazer beleza às peças do dia-a-dia, numa lógica que abandona o conceito de ‘coleções Frankenstein’. Do lado de Giorgio Armani, há o assumir de um manifesto - “roupas que mostram a pessoa, não o personagem” - com propostas práticas e usáveis em várias circunstâncias, como saias a cobrir os joelhos combinadas com blazers. A Fendi, pela mão de Kim Jones, inspira-se na roupa de escritório tendo como musa Delfina Delettrez Fendi, herdeira e membro da equipa de designers da Fendi.
A aproximação à alfaiataria nas semanas de moda de mulher, bem como nas de homem, reflete uma fluidez de género que há muito é uma realidade, mas que agora se reforça de forma mais polida, para lá dos blazers oversized e do streetwear. A busca da sobriedade dos clássicos com fórmulas de sucesso já comprovado será influenciada por outras variáveis, como o pós-pandemia (regresso aos escritórios e aos eventos), a guerra na Ucrânia (contenção do consumo) e imposições/recomendações de quem gere as marcas (roupa vendável numa escala maior). Tudo aponta também no sentido de que, no médio e longo prazo, as marcas de luxo que se inclinarem de forma mais consistente para peças intemporais e com um posicionamento mais elevado terão melhores resultados do que os daquelas viradas para criar tendências e fazer ‘barulho’.
Para isto contribui os resultados de vendas durante a pandemia, em que as marcas de luxo no topo da pirâmide (Hermès, Dior, Chanel, por exemplo) tiveram um desempenho melhor do que as restantes, apesar de terem aumentado os preços várias vezes (ou por esta razão) desde o início da pandemia. O que se viu nas semanas de moda, a aposta na alfaiataria, na qualidade dos materiais e nos cortes que resistem à voracidade do ciclo da moda e das tendências, é o materializar da necessidade de elevação de algumas marcas, apelando ao consumidor conhecedor e que não se importa de dar mais por algo melhor e distinto das restantes marcas. Estaremos nós e as marcas de luxo mesmo preparados para isto?
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