Coronavírus

Covid-19. Médicos queixam-se de ser “obrigados a estar no hospital mesmo quando não há nada para fazer”

21 março 2020 0:36

Helena Bento

Helena Bento

Jornalista

christopher furlong/getty images

Dois médicos do Hospital Curry Cabral, em Lisboa, e outra médica de um hospital no Grande Porto, queixam-se da falta da escalas, que faz com que “sejam obrigados a ir trabalhar mesmo quando não têm nada para fazer porque as consultas foram desmarcadas”. Doentes que fazem hemodiálise causam “preocupação” pelos riscos de contágio

21 março 2020 0:36

Helena Bento

Helena Bento

Jornalista

Dois médicos, a mesma queixa, a de que estão obrigados a cumprir o horário completo no hospital onde trabalham, o Curry Cabral, em Lisboa, não integrando serviços que dão resposta imediata aos casos de covid-19 e não tendo, portanto, trabalho que justifique a permanência no hospital. Num dos casos foi já feita uma escala para permitir que alguns médicos do serviço possam trabalhar a partir de casa, no outro ainda não, não estando, segundo esta fonte, “a ser dada possibilidade aos médicos a possibilidade de trabalharem em casa, em telemedicina”. A preocupação é a mesma, a do risco de contágio em meio hospitalar.

“Não foi feita uma divisão das equipas no contexto deste surto de covid-19 para redução do contágio entre profissionais de saúde”, o que significa que todos os médicos desse serviço “são obrigados a ir trabalhar, mesmo quando o volume de trabalho diminuiu substancialmente, com várias consultas desmarcadas ou realizadas telefonicamente”, diz a fonte já citada. “Obrigam-nos a estar lá. Pedimos para ter acesso, a partir de casa, ao software que usamos no hospital para trabalhar, mas recusaram”, conta.

“As direções de alguns serviços do hospital estão a obrigar os médicos a ir trabalhar, mesmo não tendo estes nada para fazer. Segundo as recomendações gerais, deve ser dada primazia ao trabalho a partir de casa, porque trabalhamos em serviços que são a retaguarda de outros que estão a lidar diretamente com casos de infeção. Não deveríamos estar a correr estes riscos neste momento. Não convém que fiquemos doentes, porque seremos necessários numa fase posterior”, diz a outra fonte, em cujo serviço foi dada, entretanto, indicação para serem feitas escalas, já depois de os médicos se terem, por sua iniciativa, “organizado em grupos para diminuir o tempo que cada um passa no hospital”. Outra médica de um hospital no Grande Porto partilhou a mesma preocupação com o Expresso. “Nós não somos profissionais de primeira linha, está tudo suspenso e nós continuamos a ter de ir ao hospital. Dizem-nos que, se viermos para casa, teremos de repor as horas posteriormente”.

“Diretores de serviço dimensionam as suas equipas na exata medida das necessidades”, garante hospital

Questionado sobre o assunto pelo Expresso, o Hospital Curry Cabral afirmou que “não é verdade” que haja médicos a ir trabalhar mesmo quando a sua presença nos serviços não é, neste momento, “imprescindível”. “Temos uma circular interna que assegura que os diretores de serviço dimensionam as suas equipas na exata medida das necessidades”. Essa circular, garante a mesma fonte, “tem sido escrupulosamente cumprida”.

Jorge Roque da Cunha, presidente do Sindicato Independente dos Médicos, afirmou não ter conhecimento de situações desta natureza. Foi contactado também o Ministério da Saúde, no sentido de perceber quais as orientações para os hospitais no que diz respeito a este assunto, mas até ao momento não foi possível obter um esclarecimento.

No domingo passado, o Sindicato Independente dos Médicos afirmou que há mais de 50 médicos infetados com o novo vírus e mais de 150 em quarentena. Ao longo da semana foram sendo noticiados outros casos de infeção ou suspeitas de infeção de profissionais de saúde em diferentes hospitais. Na altura, o presidente apelou ao governo para disponibilizar mais meios para aqueles profissionais trabalharem protegidos e protegerem os doentes.

“Os planos que existem para os doentes que fazem hemodiálise têm lacunas”

Outra preocupação dos médicos no Hospital Curry Cabral tem que ver os utentes que fazem ali hemodiálise (que incluem doentes de todas as faixas etárias com patologias hereditárias, doenças autoimunes, como lúpus e vasculites, ou até hipertensão ou diabetes mellitus, constituindo um dos principais grupos de risco no contexto da atual pandemia), conforme apurou o Expresso.

Ao Expresso é dito que “os planos que existem atualmente estão cheios da lacunas e não dão resposta a várias questões práticas - é como se não houvesse qualquer plano”. “Estes doentes recebem tratamento em clínicas que são privadas mas têm o apoio do Estado e somos nós que o asseguramos. Se não forem tomadas medidas para prevenir o contágio entre profissionais de saúde, estas pessoas podem morrer por falta de tratamento.”

Além disso, “quando surgirem casos de infeção entre estes doentes, não temos forma de os separar dos outros”. “Ninguém nos está a dar respostas. Não temos um plano para quando houver um aumento ainda maior dos casos, não temos formação adequada nem material suficiente para nos protegermos e também a eles.”

Médicos queixam-se de ter de levar roupa usada no hospital para casa

Os dois médicos ouvidos pelo Expresso queixam-se ainda da “falta de equipamento”. “Temos alguns equipamentos de circulação que estamos a utilizar, mas não protegem assim tanto contra infeções adquiridas em meio hospitalar. O material está contadíssimo e nem todos têm acesso a ele”, afirmou um dos médicos, chamando a atenção para outro “problema”, que tem que ver com a farda utilizada durante o serviço.

“Quase todos os médicos optaram por adquirir fatos de circulação, que são lavados obrigatoriamente após um dia de trabalho devido à possibilidade de estarem contaminados com o vírus. Infelizmente, o hospital não fornece algo tão básico como isto. Temos de levar o fato para nossa própria casa para lavar, onde podemos estar a contaminar a nossa família.O risco de contágio é enorme”, lamentou o outro médico.

Questionado também sobre isso, o Hospital Curry Cabral referiu que este material “existe no CHULC [Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, em que está integrado aquele hospital] em armazém, sendo que a sua distribuição é feita de forma criteriosa para garantir que não existam ruturas por uso indevido ou por eventual desvio”.

Sobre a questão das batas, o hospital afirma que “é falso que se esteja a pedir que a lavagem seja feita em casa dos colaboradores”. “A lavagem é efetuada no CHULC, havendo algumas pessoas que preferem, ainda que erradamente, levar a sua farda para casa e lavá-la no exterior. Esta atitude, minoritária, vai contra o regulamento, circunstância referida sempre que são abordados os temas de segurança e boas práticas”, refere ainda nas respostas enviadas ao Expresso.