Comportamento

O macho latino segundo Maria Filomena Mónica

4 outubro 2009 18:25

Maria Filomena Mónica (www.expresso.pt)

A sociologia treinou-a a espreitar para dentro do mundo dos outros. E Maria Filomena Mónica gosta de ouvir conversas entre homens... ainda que pasme com tamanha infantilidade. Clique para visitar o canal Life & Style.

4 outubro 2009 18:25

Maria Filomena Mónica (www.expresso.pt)

Há vinte anos, a magistratura portuguesa veio explicar-nos que o sul de Portugal era "uma coutada do chamado macho latino". As duas turistas jugoslavas, que andavam a pedir boleia pela estrada nacional nº 125, estariam a "pedi-las", ou seja, disponíveis para a foda.

A fim de que os leitores fiquem cientes de que não invento, eis um extracto da sentença: "É impossível que não tenham previsto o risco que corriam; pois aqui, tal como no seu país natal, a atracção pelo sexo oposto é um dado indesmentível e, por vezes, não é fácil dominá-la. Assim, ao meterem-se as duas num automóvel, justamente com dois rapazes, fizeram-no, a nosso ver, conscientes do perigo que corriam, até mesmo por estarem numa zona de turismo de fama internacional, onde abundam as turistas estrangeiras habitualmente com comportamento sexual muito mais liberal e descontraído do que a maioria das nativos".

Depois de violadas, as raparigas fizeram o que deviam: queixaram-se à Polícia. Do primeiro julgamento, houve recurso. A 18 de Outubro de 1989, o Supremo Tribunal de Justiça dava razão aos juízes algarvios. Bonita sentença!

É difícil generalizar

É difícil generalizar sobre o tema, até porque as reacções dos machos têm vindo a alterar-se. Concentro-me nos homens da minha geração - nascidos na década de 1940 - sobretudo na espécie, supostamente civilizada, do homo academicus.

Curiosa desde a infância e, para mais, treinada numa disciplina, a Sociologia, que nos ensina a espreitar para dentro do mundo dos outros, gosto ouvir as chamadas conversas de homens. Tendo em conta as minhas características biológicas, não me é fácil penetrar nas casas de banho masculinas ou em clubes exclusivamente destinados ao outro sexo, mas, ao longo dos anos, tenho tido oportunidade de escutar o que dizem.

Às vezes, em júris de doutoramentos, em conselho científicos e até no Gambrinus, os homens falam como se eu me tivesse tornado invisível. É então que me familiarizei com expressões como "Ela é boa como o milho" (come-se de bom grado) ou "É de atar e pôr ao fumeiro (consome-me, mas não é nada de especial).

Por detrás deste tipo de frase jaz a concepção de que as mulheres apenas têm dois destinos, o de mães (menos importante do que já foi) ou o de putas (em obvio crescendo). Muitas destas conversas masculinas são tão infantis que custa a crer que indivíduos que, noutras áreas, são capazes de explicar como se enviam satélites para o espaço, alberguem tais ideias.

A divisão qualitativa

Há ainda outra divisão, esta qualitativa. Para a maioria dos homens, as mulheres dividir-se-iam entre as que, na cama, são boas e as que são más. Segundo eles, haveria um critério objectivo - o tamanho das mamas? as nádegas? outra parte do corpo? - que lhes permitiria separar umas das outras. Nunca lhes ocorreu que aquilo que é bom, para um, é mau, para outro. Aliás, raramente se interrogam sobre a sua própria competência e, quando o fazem, reduzem-na a uma coisa tão estúpida quanto a dimensão do pénis.

Embora em número mais reduzido, o macho latino ainda circula por aí. Antes de desaparecer da face da terra, o Neanderthal manteve-se activo, durante alguns séculos, na Crimeia, na Croácia e...na Península Ibérica! Quando nasci, é verdade que já fora substituído pelo homo sapiens, embora, por vezes, ainda consiga detectar, nos meus contemporâneos, traços daquele habitante das cavernas.

Mas, se quisermos encontrar um verdadeiro macho latino, teremos de ir a Itália, a fim de observar Berlusconi, um homem que domina o seu país através da televisão, onde quotidianamente apresenta dezenas de veline (termo usado para designar as raparigas sem talento, mas aspirando a ser famosas, via TV).

Não sei quantos leitores têm o hábito de ver, através do cabo, o canal estatal RAI, também por ele dominado, mas quem o tenha feito é impossível não ter ficado atónito com a quantidade de "boazonas", serpenteando-se entre os políticos de fato e gravata. Provindo, como a sua mulher, Verónica Lario, de meios pobres, as veline fazem tudo o que Berlusconi lhes pede, até porque o Presidente deu em convidá-las, não só para deputadas do Parlamento Europeu, mas para governantes, como aconteceu com a belíssima ex-modelo, Mara Carfagna, agora Ministra das Oportunidades Iguais.

O antigo Presidente francês, Jacques Chirac, contou recentemente que, numa visita a uma das muitas villas que possui, Berlusconi lhe mostrara uma casa de banho, tendo-lhe dito ao ouvido: "Não tens ideia de quantas nádegas este bidet já recebeu". Os machos latinos são assim: ordinários, sinceros e brutais.

Não são fortes

Ao contrário do que se pensa, não são fortes. Poucos escritores os definiram tão bem quanto A. B. Kotter, no seu mais recente livro, Bilhetes de Colares (Assírio e Alvim, 2007).

Uma vez que já toda a gente sabe tratar-se do pseudónimo do Embaixador José Cutileiro, posso atribuir-lhe a frase: "Os homens portugueses ficam meninos toda a vida e finalmente acabam com complexos de masculinidade". O facto de, antes de ser diplomata, ter sido antropólogo e de, antes disto, ter sido alentejano, ajudou Cutileiro a compreender os seus irmãos de sexo.

Voltando ao princípio, gosto da ideia de "coutada", expressa na sentença judicial, porque ela remete para um espaço fechado, onde, por estarem em vias de extinção, os animais vivem semi-protegidos. O macho latino é, na minha opinião, o nosso lince da Malcata: claro que ainda existem sinais da sua actuação, mas, no fundo, já não são o que eram.

Quem seria capaz de dizer, alto e em bom som, frases como as que Rabecaz proferiu em A Capital, de Eça de Queiroz? Conversando com Artur Corvelo numa taberna de Ovar, aquele perguntou-lhe qual a sua opinião "sobre o gado" - isto é, as mulheres - explicando-lhe que, no seu caso, o que mais apreciava no "femeaço" eram "as boas carnes".

Relembrando a vida de Lisboa, disse-lhe, com ar nostálgico: "Comi tudo, mas regalei-me". Nesse dia, o garanhão começou a morrer, mas foram precisas muitas décadas de luta, por parte das mulheres, para ser remetido para uma semi-clandestinidade. Quando agora sai de casa, prefere envergar uma "burka". O macho latino agoniza, mas ainda não morreu.

Leia o artigo publicado na revista Única da edição do Expresso de 3 de Outubro ou clicando aqui, onde a edição da banca está disponível para assinantes a partir das 00h01 de sábado.