6 outubro 2009 9:30

Resolve-se primeiro, pergunta-se depois e nunca se copia: apenas se 'safa'. Os portugueses e a arte do desenrasca
6 outubro 2009 9:30
À escala planetária, o ícone da pessoa desenvolta que se consegue livrar de apuros e desembaraçar-se do que está enrascado dá pelo nome de McGyver. Passou sem pejo de nome de personagem de série televisiva para a condição simultânea de substantivo e adjectivo: seja o que for que ele tenha à mão, nem que isso se limite rigorosamente aos próprios dedos, McGyver safa-se, livra-se e resolve. E sai feliz da contenda, como se fosse ponto de honra vingar-se do problema solucionado. Afinal, desembaraçar o que está enrascado é precisamente a resposta dos dicionários ao significado da palavra 'desenrascar'. Livrar de apuros funciona como uma espécie de plano B, mas serve de igual modo o propósito.
Cada país tem a sua palavra para explicitar o mesmo conceito. Portugal, no entanto, desenvolveu o termo 'desenrascanço' para permitir juntar a sua voz aos restantes latinos enquanto figura desse terreno minado que consiste em demonstrar que uma clara virtude pode muito bem ser um defeito muito mal escondido. É por isso que uma das maneiras mais populares de desenrascar é fazer as coisas 'em cima do joelho', posição fisicamente incómoda, mas que para um luso serve para arrepiar caminho. E se for preciso, fazemo-lo de pé ou ao pé coxinho, mas sem a elegância do flamingo.
Um latino, com particular destaque para o português, vê no 'desenrascanço' uma forma de arte pelo simples facto de ter apurado o ofício a níveis olímpicos. A capacidade de resolver um sarilho, do pé para a mão e vice-versa, com poucos meios e num período de tempo ridiculamente curto, é por nós considerado como um feito digno de notas e louvor. É o exemplo do que tomamos como a eterna luta entre a inteligência e a esperteza. Se um desenrascado implica uma prévia condição de 'enrascanço', não obriga a que se saiba o que se está a fazer. O desenrascado é aquele que consegue resolver um problema sabendo pouco ou nada da matéria em questão e sem nunca insultar os especialistas. E pode viver disso, constatação que, para um português, doura, brilha e se recomenda.
Cabe dizer que a arte do desenrasca traz constantemente à baila a velha e sábia questão da solução apressada. É o mesmo com qualquer lei ou decreto: há que saber se a solução encontrada para o problema não vai criar um problema ainda maior. A vantagem do desenrascado é que a vitória é declarada assim que o problema se esfuma, mesmo que por breves instantes. A palavra mágica é 'pronto!', com exclamação e tudo. Uns truques de mão, uns devaneios de lógica, uma peça que há-de encaixar nem que seja ao empurrão e a 'coisa' desenrasca-se. É o senso lusitano: nada é eterno, nem mesmo um problema resolvido. À sua maneira, o desenrascado é aquele que respeita por inteiro os ditames da Natureza. Ou em tanto ele acredita.
Quando não está a solucionar um qui pro quo, o português desenrascado pratica a sua arte enquanto fórmula de ganha-pão. Sabe que vive num país onde o 'desenrascanço' serve à perfeição como resposta a não tirar um curso académico e aplica o termo a quase tudo. Mesmo que tire o dito curso, há sempre uma voz que ressoa quando o emprego não chega ou se perde: 'agora desenrasca-te'. E, como diz o farmacêutico, não tem o 'tuga' outro remédio.
É comum ao lusitano desenrascado descobrir que é essa a sua condição e a que nível do 'jogo' se encontra quando se vê na situação de achar que tudo é um problema. Aquilo que para a comum das hostes civilizadas é um preceito de lógica que 'não tem nada que saber', é para o português a prova cabal de que nada saber não o força a perguntar a alguém o que fazer. Se por cá acreditássemos que perguntar não ofende, nunca mostraríamos qualidades de desenrascado, que a verdade é para ser dita, mesmo que ainda falte marcar uma data.
O desenrascado e o trabalho
Nas obrigações profissionais passa-se mais do mesmo. Um latino sabe que quem fez o patrão também fez o criado e usa o 'desenrascanço' como arma de ataque e defesa. Ataca sendo mais rápido e impressionando de forma imediata (mesmo que a sua solução se esboroe de seguida, há-de ser sempre o herói do momento) e defende dando a constante impressão de que os desfavores do trabalho (a começar pelo tédio de ser forçado a fazê-lo) podem ser relegados para segundo plano. O desenrascado é como um elefante no circo: faz o que lhe mandam, mas parece ter sempre a cabeça noutro lugar. No animal, o trunfo é o tamanho. No português, é o tal talento de desembaraçar o que está enrascado. A começar por ele próprio. Como está rodeado de colegas e acima deles tem um patrão à espreita, o luso junta uma nova palavra à possibilidade do desenrascanço ser levado a cabo com sucesso: fecha o ano dizendo 'endrominei-os bem'. Ou 'endrominei-os mal', que é quando as coisas correm tão do avesso que não há McGyver ou canivete suíço que resolvam o problema.
Em casa passa-se o mesmo. Nestes tempos justos que só pecam pelo atraso em que um homem tem a sua quota parte visível e digna desse nome nas lides domésticas, o 'desenrascanço' é um manual de sobrevivência tipicamente português. É como estar num episódio de "Perdidos" tendo por cenário uma casa que tem todos os confortos e nenhuma maquineta defeituosa. É quando o 'tuga' trata de se enrascar sem razão aparente ou pedido externo. Por exemplo, por mais letrado que seja, sofre de absoluta iliteracia quando tem em mãos um livro de instruções. É porque a luzinha não acende, porque a ficha é curta, a semana é longa e o trabalho dá trabalho. Quem viva sozinho e tenha de cozinhar, sabe que o desenrascar implica fazer sempre 'uma espécie de'. Nunca é bem 'aquilo', mas antes algo que fomos capazes de 'safar'. Chega-se ao ponto de reinventar a 'nouvelle cuisine' pondo pouca comida no prato por se achar que 'à francesa' implica mostrar a loiça, que os 'messieurs' adoram a sua faiança. O mesmo com as limpezas: não se copia ninguém, mas faz-se sempre questão de compor uma versão própria...
Nos tempos modernos, com novas máquinas que perdem sentido, uso ou validade a uma velocidade avassaladora, onde se viaja mais depressa, se trabalha menos horas e se come mais rápido, tudo indicaria que o português tem mais tempo para poder dizer que tem uma vida e que a dita até tem alguma qualidade. Mistério para o qual o resto do planeta desconhece a solução, preferimos desenrascar em vez de fazer, como se o tempo corresse a nossa desfavor. A arte do desenrasca é a prova de que o tempo passa ao dobro da velocidade em Portugal. Deve ser por isso que não há moda ou tendência que se aguente por mais de um mês.
Não vamos de modas, é verdade. Numa terra onde a ideia de investimento é deixar cinco euros em cima da mesa na condição de lá termos dez na manhã seguinte, o desenrascado só podia ser invenção nossa. Quer estejamos em apuros ou os inventemos (que o enrascado é tão profissional e competente na forma como se embaraça quanto o seu contrário), sabemos que o 'desenrascanço' é muito mais do que o processo através do qual respondemos ao negativismo ou à apatia. É tudo uma questão de efeito, de provar que somos mais espertos que os demais, que chegamos mais longe mais depressa e praticamente sem meios. No discurso somos uma ironia, no facto uma ficção.
À medida que nestas linhas a primeira pessoa do plural ganha consistência e forma, é bom notar que nem todo o 'desenrascanço' é um espectáculo inocente. Veja-se a dependência que temos daqueles que 'sabem', que lá vão a casa aos arranjos ou num arranjinho nos deixam o automóvel na mesma condição em que ele entrou na garagem, só que mais polido.
Até a arte do macabro não nos é estranha. Um português crê fazer justiça ao seu dom crónico de desenrascado quando atravessa uma rua na passadeira como se se atirasse à outra berma: "Quero lá saber se me atropelam... a culpa vai ser dele e ele é que paga." E a 'alegria' que não dará viver entrevado mas feliz por se ter 'safo' com o dinheiro do seguro... Tudo porque tomamos o destino (ou o fado, como devíamos continuar a dizer) como esse príncipe da contra-espionagem: é o melhor amigo do 'desenrascanço', porque estava escrito que só nós seríamos capazes de resolver aquele sarilho e, ao mesmo tempo, é a melhor das desculpas para o insucesso. Se mexemos num assunto ao ponto de o tornar ainda mais enrascado do que ele já estava, foi desdita e azar, esses gémeos diferentes.
Todos conhecemos um desenrascado. Ao mesmo tempo, custa-nos a admitir que haja em tal 'ofício' artistas melhores do que nós. O importante é saber-lhes o paradeiro. Os que se livram de apuros têm umas 'páginas amarelas' particulares, um rol de jeitosos e algo desbocados que nunca dizem 'não' a um desafio nem 'ooops!' à asneira de o não vencer. É uma ideologia de confiança cega na incapacidade de reconhecer que, algures, há gente que sabe e que, bem à portuguesa, não é para aqui chamada.
Desenvoltos, desembaraçados e cheios de 'lata', somos um povo raro, habituado a 'safar-se' e a confundir isso com sensibilidade e bom senso. Na verdade, não resistimos a complicar na crença de que simplificamos. E o que sabem os outros? O desenrascado português, como bom latino que é, sabe que descobriu a pólvora mas nunca registou a patente. É que a concorrência é um apuro que somos incapazes de 'endrominar'.
Texto publicado na edição do Expresso de 3 de Outubro de 2009