Ciência

Prémio Champalimaud distingue cientistas que revolucionaram transplantes da córnea

João Silveira Botelho, da Fundação Champalimaud, Claes Dohlman, da Universidade de Harvard, e Gerrit Melles, do  Instituto Neerlandês de Cirurgias Oculares Inovadoras, posam para a foto antes de receberem o prémio na sede da Fundação, em Lisboa
João Silveira Botelho, da Fundação Champalimaud, Claes Dohlman, da Universidade de Harvard, e Gerrit Melles, do Instituto Neerlandês de Cirurgias Oculares Inovadoras, posam para a foto antes de receberem o prémio na sede da Fundação, em Lisboa
Nuno Botelho

Claes Dohlman e Gerrit Melles são os vencedores do Prémio António Champalimaud de Visão de 2022. O primeiro desenvolveu córneas artificiais; o segundo criou novas técnicas de transplante. O premio vale um milhão

O dia nasceu como esperado, mas com um brilho bem diferente dos outros – pelo menos para o primeiro paciente a receber córneas artificiais concebidas por Claes Dohlman, na Escola de Medicina da Universidade de Harvard EUA. Passaram 48 anos, mas Dohlman não esquece: “O paciente [o nome não é revelado] acordou e viu, pela primeira vez desde os 11 anos de idade, mulheres bonitas. Pouco depois soube que uma delas era a esposa, que lhe apresentou os três filhos”. Depois deste sucesso, seguiram-se mais de 90 mil implantes em 50 países – e os números ajudam a perceber a escolha de Dohlman como um dos dois vencedores do Prémio António Champalimaud de Visão de 2022. O prémio de um milhão de euros, divulgado esta quinta-feira à tarde pela Fundação Champalimaud, é dividido com Gerrit Melles, cientista neerlandês, que desenvolveu transplantes parciais da córnea e vários instrumentos de cirurgia.

“Estes prémios são atribuídos com o objetivo de ajudar os investigadores continuarem a desenvolver os seus trabalhos. Sendo que num dos casos estamos a falar de uma pessoa centenária. O que é extraordinário”, informa João Silveira Botelho, vicepresidente da Fundação Champalimaud.

Desenvolver uma córnea artificial, que hoje tanto é conhecida como córnea de Boston como também dá pelo nome de ceratoprótese de Dohlman, já é um feito de monta, mas Claes Dohlman recorda com ponta de orgulho que tem 100 anos de idade e não pensa acabar com a carreira tão depressa. “Continuo a trabalhar com cientistas e ajudo nos trabalhos clínicos”, diz, admitindo depois que tem uma posição menos preponderante que noutros tempos. “Vou acompanhar os jovens da minha equipa. Entre eles, o meu neto”, acrescenta.

Em Harvard, a equipa que Dohlman acompanha já tem um roteiro definido: estudo do glaucoma, desenvolvimento de anticorpos com novas funcionalidades, e inflamações geradas por bactérias formam os principais capítulos de investigação para os próximos tempos.

A primeira ceratoprótese valeu a Claes Dohlman o cognome de “pai da ciência corneal moderna”, mas no caso de Gerrit Melles o cognome aponta para “pai da ceratoplastia lamelar, e ainda não é certo que fica por aqui. Até porque é detentor de um currículo que apresenta uma variedade que vai dos transplantes parciais da córnea que geram menos complicações que os transplantes integrais, até ao desenvolvimento de pequenos habitáculos de ar esterilizado para uso em cirurgias aos olhos, entre outros instrumentos que começou a projetar quando reparou, que a clínica em que trabalhava não tinha muito investimento disponível.

E até pode acontecer que o real papel de Melles na história da oftalmologia mundial só seja conhecido nos próximos anos: “Depois de mais de 20 anos a trabalhar com transplantes, continuo sem perceber como é que as coisas realmente funcionam. A ciência evolui e o que hoje se faz de uma maneira passa a ser feito de outra maneira amanhã, mas a Natureza tem a sua agenda e é assim há milhões de anos”, explica.

Claes Dohlman, cientista de origem sueca radicado nos EUA, fez o primeiro transplante com uma córnea artificial em 1974
Nuno Botelho

Gerrit Melles apresenta-se, sem pruridos, como “cientista-artista”, devido à procura de “equilíbrio e elegância” das soluções que vai desenvolvendo e também aos concertos de trompa e piano que compôs nos últimos anos. Mas também poderia apresentar-se como cientista-artista-cirurgião – porque nunca deixou de operar nestes anos todos. A experiência cirúrgica leva-o a suspeitar de que há algo nos manuais de oftalmologia que que não bata certo com a alegada Agenda da Natureza e tudo aquilo que lhe é dado a ver nas salas de operações.

Claes Dohlman na sala de operações
DR/Louise Collins

É essa potencial incongruência entre teoria e prática que Melles pretende estudar depois de receber prémio da Fundação Champalimaud – e sempre ciente de que algumas das maiores barreiras que a ciência enfrenta nem sempre têm a sustentação científica mais adequada.

“Quando se cria algo mesmo inovador, há uma grande probabilidade de as pessoas não perceberem logo o que está em causa”, admite.

Entre os casos paradigmáticos Melles escolhe um do passado que levou obstetra a usarem luvas durante os partos, porque alguém se lembrou que talvez fosse uma forma de evitar as infeções que eram parcialmente responsáveis pela média de 18% de mortes entre parturientes.

Gerrit Melles, no jardim da Fundação Champalimaud

“Quando um governo aprova algo novo [na área da medicina], sabe que tem de assumir a responsabilidade perante a população se algo correr mal. Pode haver aí uma predisposição para travar a inovação, mas todas estas coisas que existem hoje só se tornaram possíveis porque no passado houve inovação”, refere. Foi para acelerar a expansão da ceratoprótese lamelar, que permite transplantes parciais da camada de espessura de 25 mícrons que faz da córnea a “janela do olho”, que Melles formou mais de 900 cirurgiões com a nova técnica.

Imagens que ilustram as novas técnicas cirúrgicas da córnea que foram desenvolvidas por Gerrit Melles
DR

Seguramente que esta vertente universalista também contou para a escolha dos vencedores do prémio de 2022, a partir de mais de 600 candidaturas. “É um prémio para cientistas, mas também para as pessoas e instituições que andam no terreno, muitas vez em países subdesenvolvidos, a trabalhar no combate da cegueira e, em especial, da cegueira evitável”, acrescenta João Silveira Botelho.

Dohlman, cientista sueco radicado há vários anos nos EUA, conhece bem os ritmos da ciência. “Podemos fazer coisas importantes que valem o reconhecimento durante 50 ou 100 anos, mas o maior prémio é conseguir produzir melhorias na visão dos pacientes no imediato”, recorda. No final, o importante é manter uma visão bem clara sobre as coisas.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: senecahugo@gmail.com

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