Sociedade

Turquia, dia #7 do diário do epicentro: histórias interrompidas e um futuro por decidir

Turquia, dia #7 do diário do epicentro: histórias interrompidas e um futuro por decidir
Mónica Amaral Ferreira

Portugal tem alguns dos problemas da Turquia na construção. Mas podemos seguir os seus bons exemplos, introduzindo sistemas adequados para a revisão de projetos e a fiscalização de obras, bem como ponderar a aplicação de sistemas de proteção sísmica, como o isolamento de base

Membros da missão pós-sismo na Turquia, liderada pelo Instituto Superior Técnico

A dimensão das áreas afetadas por sismos de elevada magnitude é sempre avassaladora para a compreensão humana. Percorrer as várias localidades atingidas, passar por terrenos, que eram outrora edifícios, cheios de entulho, sentir o olhar triste das pessoas que vagueiam pelos escombros é algo que sentimos doloroso no âmago da nossa alma. É difícil não nos deixarmos afetar pelo que vemos.

Passaram pouco mais de 2 meses desde os sismos de fevereiro de 2023 na Turquia. Já muitos escombros foram removidos, mas faltam ainda muitos mais. A limpeza dos terrenos avança devagar. Vieram escavadoras de todo o país para ajudar nessas operações, mas são ainda insuficientes para todo o trabalho que está pela frente. Em qualquer lugar vai-se ouvindo barulho de escavadoras a trabalhar nas demolições, ora mais perto, ora mais longe. Durante as paragens das escavadoras, escuta-se o movimento constante de camiões pejados de entulho que é levado para um dos numerosos depósitos que tiveram de ser criados para este efeito. Numa das demolições, vimos um pai, com uma filha pequena a seu lado, que fala agressivamente com o operador da escavadora. Explicam-nos depois que o pai tentava que a demolição parasse. Tinha sido ali que perdeu a sua esposa. A demolição estava a destruir todas e quaisquer recordações do seu lar, da sua família, da sua vida antes da desgraça.

Nesta missão, percorremos várias zonas assoladas pelos sismos de fevereiro. Fontes não oficiais estimam que o número de vítimas possa chegar às centenas de milhares. Vimos vários graus de destruição que vão desde um nível de dano reduzido até ao colapso completo. Ao verem capacetes brancos a observarem as estruturas, os danos, os detalhes, era muito comum algumas pessoas virem ter connosco a quererem saber quem éramos e o que fazíamos ali. Alguns tinham a esperança de sermos do Governo turco e que lhes trouxéssemos os subsídios a que se tinham candidatado. Outros pediam encarecidamente que fizéssemos uma vistoria às suas casas. Mesmo o olhar mais abatido estava a tentar prosseguir a sua vida, olhar para o futuro, carregando uma dor imensa do passado.

A violência dos sismos de fevereiro foi muito elevada. Ainda que fosse expectável ocorrerem níveis significativos de dano, alguns dos problemas poderiam ter sido evitados. A utilização de materiais de menor qualidade, o facto de muitas estruturas antigas projetadas com base em regulamentação desatualizada não terem sido reforçadas, a existência de edifícios que não foram construídos de acordo com o seu projeto, os detalhes construtivos mal executados que comprometem o funcionamento adequado das construções, tudo foram e são erros inconscientes que custaram vidas.

O que mais choca é saber que a Turquia é atualmente um país com regulamentação moderna para o projeto de estruturas, a qual considera as mais recentes disposições para construções sismo-resistentes. A sua Engenharia é desenvolvida com padrões de qualidade elevados e existem profissionais e técnicos com o conhecimento adequado. Apesar disso, erros são cometidos, como se viu no caso de hospitais construídos sem isolamento de base que ficaram completamente destruídos, no momento em que eles são mais precisos. Este é um cenário que se julga que poderá ocorrer também em Portugal. Os regulamentos europeus que se utilizam aqui para o projeto de estruturas seguem os mais recentes desenvolvimentos científicos. Os engenheiros civis portugueses têm uma formação adequada e reconhecida internacionalmente, todavia não podemos descurar a importância da formação contínua em que as Universidades têm um papel fulcral. Mas também existem problemas. Temos em Portugal muitas estruturas antigas, construídas antes de qualquer regulamentação ou com base em regulamentação que possuía disposições insuficientes, que deveriam ser reforçadas. Por vezes existem também lapsos no projeto ou erros na execução de detalhes construtivos em obra, semelhantes aos que vimos na Turquia e que poderão ter consequências idênticas.

Contudo, existem exemplos que nos trazem esperança. Em Erzin, vimos como uma ação mais proactiva da Câmara Municipal, que envolve fazer revisão dos projetos e fiscalização em obra, pode minorar problemas e, neste caso, evitando quaisquer vítimas. Observámos também hospitais com isolamento de base que permaneceram completamente operacionais durante e após o sismo, conseguindo dar assistência à população necessitada de cuidados médicos.

Portugal tem alguns dos problemas da Turquia na construção. Mas podemos seguir os seus bons exemplos, introduzindo sistemas adequados para a revisão de projetos e a fiscalização de obras, bem como ponderar a aplicação de sistemas de proteção sísmica, como o isolamento de base, às infraestruturas cujo funcionamento sem interrupção se considera essencial durante e após um sismo, como é o caso dos hospitais. Seria também útil dar formação adequada aos operários da construção, de modo a aumentar a consciencialização acerca do impacto de detalhes construtivos adequadamente executados no comportamento das edificações face aos sismos. O conhecimento técnico necessário para abordar estas questões existe e a vontade de seguir este caminho é partilhada pelos profissionais e técnicos que possuímos.

Gostaríamos também de realçar a disponibilidade e abertura do Ministério da Saúde da Turquia em reunir-se connosco e prestar informações sobre o processo e as decisões que conduziram à adoção obrigatória dos sistemas de isolamento sísmico em todos os hospitais, em zonas de maior risco sísmico da Turquia. Como mencionado em artigos prévios esperamos que esta missão possa servir como um catalisador para uma visita oficial do Governo português e que isto contribua para que no futuro o isolamento de base e sua monitorização seja obrigatório no projeto de hospitais ou noutras infraestruturas consideradas importantes, para que fiquem funcionais imediatamente após um sismo.

No final desta missão, sentimos profunda tristeza e pesar pelo que sucedeu na Turquia e por todas as vítimas que estes sismos provocaram. Sentimos também alguma frustração por sabermos que vários dos problemas que levaram ao desempenho deficiente das estruturas poderiam ter sido corrigidos. Partilhamos também esta frustração com a situação em Portugal, onde, por várias vezes, a academia e os profissionais da área têm alertado para questões a corrigir, sem que exista alteração de atitudes. Mas regressamos da Turquia também com um sentimento de esperança. É possível fazer melhor e acreditamos que esse será o caminho a seguir.

DR

NOTA: O “Diário do Epicentro” apenas foi possível graças ao total apoio e recetividade do jornal Expresso por esta temática, desde o primeiro instante. Permitiu que muitos leitores, em Portugal e no estrangeiro, nos acompanhassem nesta missão pós-sismo, ao mesmo tempo que proporcionou a transmissão do conhecimento e a comunicação do risco. Tomámos conhecimento que a Embaixada Portuguesa na Turquia seguiu esta missão, através desta oportunidade promovida pelo Expresso online. A comunicação social tem um papel fundamental na disseminação e comunicação do risco, sem as quais não há perceção do risco pela população, que é vital para a redução do risco no parque construído e não só.

Queremos agradecer ao Professor Carlos Sousa Oliveira, que mesmo não podendo comparecer a esta missão, esteve sempre presente; à empresa TDG - Structural Health Monitoring, por todo o apoio prestado na Turquia; ao vereador da Câmara de Erzin pela hospitalidade e abertura em se reunir connosco; ao Ministério da Saúde da Turquia pela disponibilidade em nos receber e em partilhar todo o processo que levou aos sistemas de isolamento de base instalados hoje; ao nosso condutor Yilmaz e à colega Deniz Dozçar, que não se imagina como se sentirá, na sua primeira missão pós-sismo, por ter de mostrar o seu país arrasado e destruído; aos que vinham ao nosso encontro e contaram um pouco do que foi o dia do sismo e como serão os vindouros; e àqueles que nos venderam saborosos Kebabs em restaurantes improvisados à beira da estrada onde não havia mais nada para comer.

Esta é uma missão não-governamental composta por membros da academia, da Sociedade Portuguesa de Engenharia Sísmica e de empresas, que se juntou a colegas da Turquia.

Autores:

Cristina Oliveira - Escola Superior de Tecnologia do Barreiro do Instituto Politécnico de Setúbal

Xavier Romão - Departamento de Engenharia Civil da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto

Mónica Amaral Ferreira e Mário Lopes - Instituto Superior Técnico

Paulo Pimenta - Pretensa Lda.

Miguel Sério Lourenço - JSJ Structural Engineering

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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