A doença tirou-lhe mobilidade e afastou-o das missões humanitárias, mas Gustavo Carona não se deixou vencer: vêm aí os “Óscares da Bondade”
Gustavo Carona passa grande parte do dia deitado, a única posição que o alivia das dores crónicas
RUI DUARTE SILVA
Quando Gustavo Carona apresentou o projeto a Marcelo Rebelo de Sousa, a ideia não germinou. Agora que tem todo o tempo do mundo, privado de trabalhar pela doença, o sonho ganhou vida. Dezenas de voluntários estão já envolvidos na concretização dos “Prémios Coração e o Mundo”, destinados a reconhecer o trabalho sério e credível, muitas vezes invisível, de indivíduos e organizações em áreas de intervenção social. “Há coisas na nossa sociedade absolutamente maravilhosas a precisar de visibilidade…”, diz o médico ao Expresso
“E o Prémio Coração e o Mundo vai para…” Nos últimos meses, é muito provável que o médico Gustavo Carona tenha “ouvido” esta frase, várias vezes, durante o sono. Afinal, ela remete para o projeto que o toma a tempo inteiro desde que foi forçado a deixar de trabalhar, no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, há dois anos.
Com uma doença incurável que lhe provoca dor crónica e o condena a passar grande parte do dia deitado, este intensivista de 42 anos foi ao arquivo dos sonhos para dar sentido aos dias e prosseguir com as ações humanistas que sempre o entusiasmaram.
Gustavo Carona tem 38 anos e a bagagem cheia de memórias, exibidas como medalhas das vidas que salvou em países como Paquistão, Afeganistão, Síria ou Iraque, onde a morte é a lei que o mundo aprova silenciosamente, de olhos fechados
Numa das gavetas, do cérebro e da secretária, tinha guardado um projeto a que chamou, em tempos, “Prémios Coração e o Mundo”, uma espécie de “Óscares da Bondade”, como o próprio caracteriza em conversa com o Expresso. O médico idealizou-os como forma de reconhecimento do trabalho sério e credível, mas muitas vezes invisível aos olhos do grande público, de indivíduos e organizações em áreas de intervenção social.
“Acredito muito numa cultura de mérito e acredito que nos moldamos pela premiação. Se transportarmos isto para a linguagem empresarial, é só óbvio que o que se premeia é aquilo que depois as pessoas procuram. Nesse sentido, pareceu-me que premiar a bondade, com a vontade de construir uma sociedade com valores mais humanísticos, tem sido uma estratégia pouco utilizada”, diz.
“Há pessoas tão bonitas... Há coisas na nossa sociedade absolutamente maravilhosas a precisar de visibilidade…”
A ideia foi verbalizada pela primeira vez durante as reuniões do Grupo de Reflexão para o Futuro de Portugal, promovidas por Marcelo Rebelo de Sousa, entre 2018 e 2022. Carona era um dos “40 portugueses nascidos depois do 25 de Abril de 1974, a viverem no país e no estrangeiro, preferencialmente sem participação política, com percursos de sucesso, independência e rasgo”, como a iniciativa é descrita no site da presidência.
“Apresentei a ideia ao Presidente da República. Não deu em nada, mas ficou na minha cabeça. E agora saiu cá para fora.”
“Prémios Coração e o Mundo” é o projeto que ocupa Gustavo Carona desde que deixou de poder trabalhar
RUI DUARTE SILVA
O foco na bondade e na compaixão decorre muito da experiência de mais de uma dúzia de missões humanitárias realizadas, desde 2009, ao serviço dos Médicos Sem Fronteiras, dos Médicos do Mundo e da Cruz Vermelha Internacional, em zonas de carência extrema como a Síria, a República Democrática do Congo, o Afeganistão ou o Sudão do Sul.
“Já tive experiências muito fortes de contacto com realidades de extrema pobreza em África, no Médio Oriente, em situações máximas de desespero, no meio da guerra, e senti uma enormíssima empatia pelo sofrimento destas pessoas. Eu compreendo que quem nunca lá esteve não tenha essa empatia. Não me sinto especial, o que sinto é que fui exposto a circunstâncias especiais.”
Com o mesmo ímpeto com que, durante anos, disponibilizou o seu tempo para correr mundo em socorro dos que mais sofrem, a 13 de novembro passado, Carona divulgou um vídeo nas redes sociais lançando a ideia dos “Prémios Coração e o Mundo” e pedindo ajuda para a concretizar.
O que se seguiu foi avassalador. O vídeo foi somando centenas de milhares de visualizações e as caixas de mensagens do médico viram-se inundadas com milhares de sugestões de nomes de organizações com trabalho digno de ser reconhecido ou simplesmente recados de amigos, conhecidos ou gente seduzida pelo apelo a disponibilizar-se para ajudar.
“A ideia pegou e eu fiquei super nervoso”, confessa. “E agora? Será que tinha conhecimento para montar uma coisa destas? Na verdade, só sei ser médico, tudo o resto é sonho. Comecei a acreditar quando vi pessoas de uma enormíssima qualidade a dizerem: ‘estou dentro, quero ajudar’.”
Foi o caso da realizadora Ana Rocha de Sousa, vencedora de um Leão do Futuro, no Festival de Cinema de Veneza, com o filme “Listen”. A cineasta ofereceu-se para fazer o guião da gala “Prémios Coração e o Mundo”, que já captou o interesse de duas televisões.
O sofá da sala e a cama no quarto tornaram-se as novas secretárias de escritório de Gustavo Carona
RUI DUARTE SILVA
Carona pensou no que tinha pela frente e começou a distribuir trabalho pelas mãos solidárias que se lhe estendiam. Para rastrear os milhares de comentários nas redes e agrupar as organizações sugeridas por categorias, pediu ajuda à Beira Aproxima, uma associação humanitária formada por estudantes de Medicina da Universidade da Beira Interior, com sede na Covilhã, vocacionada para realizar missões de voluntariado em países em desenvolvimento, da qual o médico portuense é padrinho.
Este apuramento é essencial para que, posteriormente, um júri composto por “pessoas com décadas de ação humanitária”, dirigentes de organizações experientes na área social e humanitária, já consagradas a nível nacional, selecione 68 organizações — quatro por 17 categorias — que serão as protagonistas da gala “Prémios Coração e o Mundo”.
As 17 categorias que irão a votos são: habitação, arte de intervenção, terceira idade, pessoas com deficiência, pessoas em situação de sem-abrigo, direitos das mulheres, pobreza, direitos LGBT+, jornalismo, além-fronteiras - Saúde, além-fronteiras - Educação, refugiados e imigrantes, alterações climáticas, pessoa, crianças e adolescentes em risco, racismo e defesa dos animais.
“Porque é que nos estamos sempre a queixar de que a sociedade é fútil, se aquilo que premiamos é futilidade? Se premiarmos bondade e humanidade, a sociedade vai ser mais bondosa, mais humana”
Este projeto não pretende ocultar os problemas, visando “também mostrar a beleza das soluções. Claro que há coisas tristes, mas passam a ser as coisas mais bonitas do mundo se nós olharmos de coração aberto e fizermos parte da ajuda”.
Gustavo Carona e o inseparável Zaidu, um dos seus dois cães, na sua casa, em Matosinhos
RUI DUARTE SILVA
No espetáculo que se projeta, o público será chamado a votar para distinguir uma organização em cada categoria. Será um reconhecimento meramente simbólico já que o objetivo é que todas as 68 associações recebam um prémio monetário de igual valor.
“O vencedor receberá uma estatueta. Mas, para tentarmos manter um princípio de equidade, para contrapormos o facto de, por um lado estarmos a pôr organizações a competir entre si, e por outro, todas fazerem um trabalho incrível, vamos premiar monetariamente todas de igual forma”, explica Carona. Cada uma à sua maneira, todas contribuem para “o verdadeiro impacto”.
Fruto de uma exposição mediática que já leva alguns anos, primeiro decorrente das missões humanitárias e, mais recentemente, de múltiplas intervenções públicas a propósito da pandemia, Carona chegou facilmente à fala com um conjunto de figuras públicas pedindo-lhes que apadrinhassem/amadrinhassem a iniciativa e tentassem contagiar outros pares, ou simplesmente divulgassem a ideia dos Prémios nas suas redes sociais.
Como que a comprovar esta dinâmica, a conversa com o Expresso é interrompida pela chegada de uma SMS com boas notícias. É enviada pelo ex-futebolista Tarantini (Rio Ave), informando ter já garantida a adesão ao exército de voluntários de dois outros futebolistas internacionais.
Um exército de voluntários
Do sonho à realidade, este exército de voluntários tem ainda muito trabalho pela frente: a construção de um site (prestes a surgir), a constituição de uma associação para efeitos de questões administrativas, campanhas de angariação de fundos e de patrocinadores, além da produção do espetáculo.
“Às vezes digo que quero que isto seja sexy. Porquê? Não podemos ter uma plateia de pessoas a bater palmas com muita pena dos pobrezinhos… Isto tem de envolver artistas bons, conhecidos, mas também que tenham ação humana na sua forma de estar. E toda a apresentação da gala que seja alegre, que seja a projeção de sorrisos pelo bem que estas pessoas fazem à nossa sociedade”, diz.
“Não acham bonito premiar as pessoas mais humanas da nossa sociedade?”
Corrida a cortina da gala, Carona gostava que “as associações se sentissem orgulhosas do seu trabalho e fossem reconhecidas por uma grande fatia dos portugueses por aquilo que fazem. Elas precisam de ser incentivadas. Essa seria a conquista”.
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