Ativistas que ocuparam prédio devoluto para ajudar sem-abrigo julgados por usurpação de imóvel: “Coisas impossíveis de provar”, diz um deles
TIAGO PETINGA
Ministério Público acusou seis voluntários do movimento Seara do crime de usurpação de imóvel. Os agora arguidos ocuparam um prédio devoluto para instalar um centro para sem-abrigo. Mas o número 9 do Largo de Santa Bárbara tinha um dono que pede agora uma indemnização de mais de 30 mil euros
Os voluntários que decidiram transformar um infantário desocupado num centro para acolher sem-abrigo arriscam uma pena de dois anos de prisão depois de terem sido acusados pelo Ministério Público de usurpação de coisa imóvel.
Neste caso específico, trata-se de um prédio no coração de Lisboa, no número 9 do Largo de Santa Bárbara que, na verdade, pertencia a três empresas imobiliária que pretendiam renovar o imóvel e vendê-lo a clientes estrangeiros. Ou, na versão das pessoas que o ocuparam, “foi vendido a especuladores imobiliários, expulsando os seus moradores, em prol de um qualquer plano de requalificação previsto para a zona.”
O centro funcionou cerca de um mês, entre maio e junho de 2020, em plena pandemia de covid-19, e os elementos da Seara – a organização que estava por trás da alegada ocupação – tiveram de ser expulsos à força do edifício depois de uma intervenção de uma empresa de segurança privada contratada pelos donos do imóvel e da PSP que chegou a distribuir bastonadas por manifestantes que foram ao local apoiar os ativistas.
O centro chegou a acolher mais de uma dezena de pessoas sem abrigo e alguns deles resistiram ao despejo durante o dia inteiro.
Agora, seis dos cerca de 50 voluntários que mantiveram o local a funcionar vão a julgamento e, para além da prisão, ainda poderão ser obrigados a pagar o que a imobiliária gastou em segurança privada e no entaipamento do edifício: cerca de 30 mil euros.
Há pouco mais de uma semana, foi organizado um concerto num bar em Lisboa com artistas como Luís Severo e Filipe Sambado para angariar fundos para a defesa dos arguidos. O início do julgamento ainda não tem data marcada.
“Eu não tenho experiência em ser acusado, mas esta acusação surpreende-me pelos termos usados porque fala de coisas impossíveis de provar porque não aconteceram. Por exemplo: nós não arrombámos nada, não destruímos nada para entrar. E avisámos as autoridades do que íamos fazer”, garante Bernardo Alvares, músico e um dos seis acusados. “O que eu espero do julgamento é que pelo menos sirva para discutir a política de habitação da cidade”, finaliza.
Segundo a acusação, a que o Expresso teve acesso, o processo começou com uma “denúncia apresentada pelos proprietários do imóvel (…) desejando procedimento criminal contra as pessoas” que ali “se introduziram (…) sem qualquer tipo de autorização do legítimo proprietário.”
Mas na contestação que entregou em tribunal, a advogada Ana Reis da Silva, que representa com a colega Aline Cardoso Nunes os seis arguidos, alega que “o Centro de Apoio Mútuo começou a funcionar em 9 de Maio de 2020”, tendo a sua “existência” e as suas “intenções” sido comunicadas “à Câmara Municipal de Lisboa, à Procuradoria Geral da República e à Direção Nacional da PSP”.
Para além disso, garante que tentaram “contactar o proprietário do imóvel”, mas “sem sucesso”.
Na versão da procuradora Margarida Godinho Silva, “os arguidos (…) removeram e destruíram as taipas de madeira que ali haviam sido colocadas e, desse modo, introduziram se naquele imóvel, que se encontrava vedado ao público”.
Esta acusação também é refutada pela defesa: o edifício “não tinha quaisquer taipas ou emparedamentos, à exceção de um bocado de uma das janelas do piso térreo” e “não se concebe como é que um conjunto de pessoas (…) lograram desentaipá-lo sem que isso tivesse suscitado participações à Polícia de Segurança Pública”. O emparedamento do edifício só se deu depois da intervenção dos seguranças privados e dos polícias. Além disso, “nenhum dano foi feito ao espaço, antes pelo contrário; os voluntários limparam o mesmo e equiparam-no com mobiliário de sua propriedade, visando garantir um ambiente adequado e seguro”.
TIAGO MIRANDA
Mais de dois anos depois, o prédio continua entaipado e desocupado, mas com obras a decorrer.
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